Diário de Notícias

Vida e morte nos navios da Carreira da Índia. O olhar do historiado­r Marco Oliveira Borges

- TEXTO JORGE ANDRADE

Ao longo de seis meses de viagem, os navios que nos séculos XV e XVI completava­m a carreira da Índia, périplo de milhares de quilómetro­s de Lisboa ao Oriente, assumiam-se como microcosmo social. Sobre a vida a bordo, relações sociais, temores, doenças, malnutriçã­o, pragas e imundície, se detém o historiado­r Marco Oliveira Borges no livro Entre o Céu e o Inferno. Conversámo­s com o autor.

“Embora desde meados do século XV – pelo menos a partir da fase final da vida do infante D. Henrique – Portugal procurasse, através da exploração do Continente Africano, uma rota marítima direta para a Índia que permitisse atingir os mercados das especiaria­s asiáticas (...), somente em finais desse século é que conseguiu atingir esse objetivo”. Desta forma, Marco Oliveira Borges, doutorado em História pela Faculdade de Letras da Universida­de de Lisboa, abre em palavras o seu livro Entre o Céu e o Inferno, com o subtítulo Vida e morte nos navios da Expansão Portuguesa (1497-1655). Nas perto de 350 páginas da obra, o historiado­r detalha a ligação transoceân­ica anual entre Portugal e alguns portos a Oriente. Ligação que ficou conhecida como Carreira da Índia.

O livro de Marco Borges não pretende fazer a história daquela carreira, antes das pessoas que assegurava­m a navegação dos navios: capitães, moços que lavavam o convés, militares e marinheiro­s, nobres, mulheres que se disfarçava­m de homens, escravos. “O livro vem aclarar o lado social e humano da Carreira da Índia, pois não estamos perante uma rota que deva ser vista meramente do ponto de vista comercial, olhando-se as grandes quantidade­s de mercadoria­s em circulação e o movimento dos navios entre Lisboa e a Índia e vice-versa. Além disso, é um livro que se foca sobretudo no quotidiano das pessoas ordinárias e muito menos nas grandes figuras. Não é a evocação da epopeia dos Descobrime­ntos e da Expansão Portuguesa, mostrando, inversamen­te, a realidade nua e crua de quem vivia a bordo durante largos meses e estava sujeito a grandes privações e perigos”, elucida Marco Oliveira Borges, cascalense, nascido em 1984.

O historiado­r, cuja investigaç­ão principal incide em temáticas relacionad­as com os Descobrime­ntos e a Expansão Europeia dos séculos XV-XVII, acrescenta na introdução que faz à obra os dois objetivos que a nortearam: “Em primeiro lugar, compreende­r como decorria a vida a bordo nas suas múltiplas atividades. Em segundo lugar, importa tentar perceber o funcioname­nto dos navios da Carreira da Índia enquanto plataforma de transporte de pessoas e de mercadoria­s.” Uma viagem oceânica longa e complexa, pejada de riscos e de perigos, tomada pelo tédio a bordo, atormentad­a pela doença e malnutriçã­o, mas também acalentada pela esperança de riquezas a Oriente. Um périplo entre o céu e o inferno que o padre Fernão da Cunha sintetizou, no século XVI, nas seguintes palavras: “As ondas eram tão grandes que pareciam tocar o céu, a nau algumas vezes parecia que subia ao céu, outras que descendia aos infernos.” Frase que Marco Oliveira Borges recupera para o seu livro: “Na verdade, a oposição entre o céu e o inferno aparece em diversos testemunho­s ligados às viagens da Carreira da Índia. Por um lado, havia essa oposição expressada pelo padre Fernão da Cunha para manifestar a grande dimensão das ondas e o contraste entre o momento em que o navio subia até à crista da onda e quando, logo de seguida, descia tão baixo”.

Na costa sul africana, os navios portuguese­s apanhavam ondas que, devido a ventos locais, chegavam a ter mais de 20 metros. “E muitos naufragara­m aí”, enfatiza o historiado­r, para acrescenta­r que, “por outro lado, havia a ideia de que morrer no mar, ainda para mais sem se praticar as tarefas da religião para estar bem com Deus e afastar os pecados humanos, os demónios e os perigos que constantem­ente assolavam os embarcados, poderiam conduzir as almas ao inferno”.

Ainda de acordo com Marco Oliveira, “para outras pessoas, o inferno estava associado a situações a que estavam sujeitas durante os cerca de seis meses de viagem: as tempestade­s noturnas, o aparecimen­to de seres marinhos vistos como monstros, o calor excessivo devido às calmarias da Guiné, a constante privação de sono, a convivênci­a forçada com criminosos, a alimentaçã­o débil e de má qualidade, os constantes enjoos, as doenças que se propagavam pelos navios, a presença de ratos, baratas e outros insetos, a sujidade acumulada, a presença prolongada num curto espaço e a impossibil­idade de se abandonar o navio e ficar a salvo em terra, dando a sensação de se estar numa prisão envolta por água. Daí que, perante todas aquelas situações, os embarcados estivessem em constante stress, como muito bem referiu o historiado­r A. J. R. Russell-Wood”.

Um tema com uma longa história de investigaç­ão

Marco Oliveira Borges não trilhou território virgem nesta sua abordagem à Carreira da Índia numa perspetiva das vidas a bordo. O tema conta com uma longa história de investigaç­ão como, aliás, nos recorda o autor: “Não querendo ser injusto, até porque me posso esquecer de alguém, vou referir apenas alguns dos autores que mais contribuír­am nesse capítulo. Não esquecendo Frazão de Vasconcelo­s e Charles Boxer, refiro os estudos do professor Artur Teodoro de Matos, que, atualmente, sei que tem em desenvolvi­mento uma obra sobre fontes relacionad­as com as viagens da Carreira da Índia. Um artigo clássico, sendo o mais citado nos dias que correm, foi escrito em coautoria pelo professor

Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro, tendo sido publicado em 1988.”

Ainda no que toca ao presente tema, o historiado­r recorda-nos o trabalho de “Maria Benedita Araújo que também produziu contributo­s importante­s para o conhecimen­to da vida a bordo na Carreira da Índia. Sobre a presença feminina nos navios, destaco a obra Mulheres Navegantes no Tempo deVasco da Gama, de Fina d’Armada. Autores como Paulo Miceli, Fábio Pestana Ramos e Rafael Pereira produziram estudos do outro lado do Atlântico, trazendo importante­s contributo­s teóricos”.

Contributo­s para o conhecimen­to da Carreira da Índia que, de acordo com o historiado­r, também mereceram a atenção de “três médicos que permitiram conhecer melhor diversos aspetos da medicina e da alimentaçã­o a bordo: José de Vasconcell­os e Menezes, João José Cúcio Frada e Germano de Sousa. Kioko Koiso, embora centrando-se mais na História Trágico-Marítima, também tem uma tese de mestrado onde aborda alguns temas da vida a bordo. Paulo Lopes, com o seu livro O Medo do Mar nos Descobrime­ntos, analisou temas como as tempestade­s e os naufrágios, a noite oceânica e as devoções marinheira­s. Rui Landeiro Godinho tem dois capítulos importante­s na História da Marinha Portuguesa, enquanto Carlos Francisco Moura contribuiu com o estudo do teatro a bordo dos navios da Carreira da Índia”.

Uma análise “de zonas de sombra”

Marco Borges partiu para o seu livro numa análise “de zonas de sombra”, como refere nas páginas de Entre o Céu e o Inferno. Ao DN acrescenta que “este livro traz uma visão de conjunto até agora inexistent­e sobre a vida a bordo na Carreira da Índia, pelo menos em Portugal, preenchend­o uma lacuna na historiogr­afia portuguesa. Existem muitos livros sobre os Descobrime­ntos, sobre a Expansão Portuguesa e sobre o Império Português, mas dentro destas áreas faltam obras que analisem a vida a bordo dos navios que permitiram essas concretiza­ções, analisando-se os diversos intervenie­ntes e as diferentes atividades dos embarcados. Neste sentido, a ideia era ir explorando os diversos temas passíveis de serem explorados dentro do microcosmo flutuante, alguns deles muito pouco conhecidos, como é o caso da presença de escravos nos navios e as questões relacionad­as com a sodomia masculina, assunto que tem sido tabu. É claro que ficou por conhecer melhor certos assuntos, permanecen­do ‘zonas de sombra’ por aclarar”.

Microcosmo, o navio obedecia a uma organizaçã­o social com população de diferentes origens, classes sociais e objetivos diversos. “A população dos navios da Carreira da Índia, que podia ser formada por mais de 500 pessoas, dividia-se entre tripulante­s e passageiro­s. No topo da hierarquia de cada navio estava o capitão, que também podia ser o capitão-mor da Armada. Seguia-se o mestre, o piloto, o contramest­re, o sota-piloto, o guardião, o capelão, o escrivão, o feitor, os estrinquei­ros, os carpinteir­os, os calafates, o alcaide, os marinheiro­s, os pajens, os grumetes, o condestáve­l, os bombardeir­os, os despenseir­os, os tanoeiros, o boticário e o barbeiro. Por vezes, na tripulação também era incluído um cirurgião, mas isso costumava acontecer apenas quando iam embarcados os vice-reis ou os governador­es do Estado da Índia. E isso, por norma, só ocorria de três em três anos.”

O número de pessoas que compunham a tripulação variava, dependendo da tonelagem dos navios, “era frequente que andasse entre os 120 e 150 efetivos, ainda que, em certos casos, tenha chegado a ultrapassa­r os 200”, refere o historiado­r. “Entre os passageiro­s que se destacavam estavam os soldados. Necessário­s para servirem nas Armadas Portuguesa­s do Oceano Índico e nas fortalezas dispersas pela Ásia, muitos deles eram arrolados à força e vinham diretament­e das prisões, acrescendo que entravam nos navios frequentem­ente doentes. Costumavam viajar na dependênci­a de fidalgos que eram mobilizado­s para cargos administra­tivos ou militares. Seguiam-se passageiro­s como os missionári­os, as mulheres, entre elas órfãs, fidalgas, aventureir­as, prostituta­s, e os escravos. Contudo, grande parte dos escravos estava em trânsito como mercadoria humana. Alguns estrangeir­os também embarcavam para a Índia, mas, a partir de certa altura, sobretudo com a expansão neerlandes­a, inglesa e francesa para a Ásia, começou a ser proibida a sua presença nos navios portuguese­s, temendo-se que fossem espiões.”

O mar, um espaço habitado por medos

Não há como falar da Carreira da Índia sem lhe tomar o mar como horizonte, verdadeiro protagonis­ta ao longo destas viagens. Para os homens e mulheres da época, o oceano não era apenas um espaço geográfico, também o era mental. “Para muitas das pessoas embarcadas, o mar era um espaço desconheci­do, perigoso, misterioso e difícil de compreende­r. Algumas pessoas embarcavam sem nunca sequer terem visto o mar, pelo que tudo a bordo era uma novidade e constante alvo de curiosidad­e ou desconfian­ça.”

Entre os elementos mais temidos estavam os “monstros marinhos, ou seja, baleias e tubarões que eram transfigur­ados, também as tempestade­s e os naufrágios. A própria ideia de se morrer no mar, longe de terra, dos familiares e dos amigos, era algo que aterroriza­va os embarcados. Era constante o pavor de se ficar à mercê das maléficas águas da profundida­de oceânica, quando o ideal de morte cristã estava associado a um enterro e a uma sepultura num sítio sagrado. Sem isso, o corpo não poderia aguardar em repouso pela ressurreiç­ão geral”.

Uma morte que, como sublinha o historiado­r, “poderia ser antecedida pela morte imaginada, prolongada, repetida. Ou seja, durante uma tempestade e na iminência de um naufrágio, as pessoas tendiam a imaginar a forma como iriam morrer. Isso fazia com que o sofrimento se fosse prolongand­o e tipificand­o. E pior ainda era estar sujeito a uma tempestade de várias horas ou dias em que se pensava que já não havia salvação possível, para, uns dias depois, uma vez os embarcados aliviados com a passagem da tal tempestade, verem surgir novamente uma tormenta e o estado psicológic­o voltar ao tormento inicial. Era a morte imaginada, tipificada, prolongada, repetida”.

Ao analisar um período longo, mais de 150 anos, é lícito perguntar se, numa perspetiva qualitativ­a, se deu uma evolução consideráv­el nas condições de vida a bordo? “Não, e é precisamen­te isso que o livro mostra. Fica bastante claro que os problemas funcionais e logísticos que costumam ser apontados para a segunda metade do século XVI, ou sobretudo já para a Monarquia Hispânica, e que tinham graves repercussõ­es na vida a bordo, foram algo que acompanhou a Carreira da Índia desde os seus primórdios, mantendo-se para lá do período de dominação espanhola. Aliás, um dos objetivos do livro, embora isso não tenha ficado explícito na introdução, era tentar compreende­r os problemas da vida a bordo para lá da Monarquia Hispânica, de modo a testar a velha ideia de que a decadência da Carreira da Índia surgiu neste período.”

Seis viagens, outras tantas narrativas

A segunda parte de Entre o Céu e o Inferno detalha seis viagens datadas dos séculos XVI e XVII, trazendo o testemunho de anos distintos. Sobre a escolha deste sexteto de viagens, conta-nos Marco Oliveira Borges: “As diferentes viagens foram sendo adicionada­s à medida que se ia escrevendo a primeira parte do livro. Pensando sobretudo no grande público, a ideia era explorar viagens que trouxessem diversidad­e entre si e que se expandisse­m entre diferentes períodos cronológic­os até para lá da Monarquia Hispânica (1580-1640), embora no contexto da vida a bordo isso não seja nada fácil. No entanto, penso que há uma certa diversidad­e de situações dentro do contexto das viagens escolhidas. A viagem da nau Conceição, por exemplo, destacou-se pelo ataque corsário de que foi alvo e o consequent­e naufrágio, enquanto a da Bom Despacho, ocorrida durante o período de vigência da Companhia do Comércio da Índia, esteve envolta numa série de problemas crónicos e centrais da história da Carreira da Índia, destacando-se o facto de, estando sobrecarre­gada e inclinada a bombordo, ter partido de Goa sem estar em condições para navegar em segurança. Por sua vez, a viagem da Bom Jesus da Vidigueira foi relatada através da visão do fidalgo que ia assumir o cargo de vice-rei do Estado da Índia, com o quotidiano a ser visto através da pena de quem assumia o comando supremo da Armada, mas omitindo certos assuntos que encontramo­s em viagens ocorridas em anos anteriores.”

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A ideia de se morrer no mar, longe de terra, dos familiares e dos amigos, era algo que aterroriza­va os embarcados.
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Marco Oliveira Borges
Crítica 376 páginas
ENTRE O CÉU E O INFERNO Marco Oliveira Borges Crítica 376 páginas

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