A FDEC do PREC
Terá mesmo Napoleão mandado disparar os canhões contra as Pirâmides, como se vê no pastelão histórico de Ridley Scott que passa nos cinemas? Nem de propósito, ou repegando na velha teoria conspirativa de que não há coincidências, em plena passagem de mais um aniversário do 25 de Novembro que marcou o fim do PREC, o Processo Revolucionário Em Curso que os leitores mais antigos recordarão com a saudade característica de um surto psicótico de “otimismo de memória” e os mais novos como apenas mais uma data que lhes diz tanto como o 5 de Outubro – ou ainda menos, porque nem sequer é feriado –, decorre nas páginas dos jornais, nos meios artísticos e nos círculos académicos uma FDEC – Fascinante Discussão Em Curso – sobre a importância do rigor histórico na difusão popular dos acontecimentos e personagens que mudaram as nossas vidas e sociedade e da percepção que delas fica gravada na mente colectiva. E que, por mais investigações e rigor dos historiadores, não se apaga.
A discussão sobre o que aconteceu realmente no 25 de Novembro, quando, sob a tutela cautelar do Presidente Costa Gomes, os oficiais que queriam um regime democrático em Portugal se organizaram para impedir uma nova ditadura, renasce sempre que se aproxima a data. O general Costa Gomes, traumatizado nos seus primeiros anos como militar pela Guerra Civil de Espanha, queria a todo o custo evitar a cisão nas Forças Armadas entre blocos irreconciliáveis; o Grupo dos Nove, onde estavam oficiais fundadores do 25 de Abril, queria a democracia no país e a tropa nos quartéis; o major Otelo Saraiva de Carvalho, chefe da esquerda revolucionária militar, não sabia o que queria; e a esmagadora maioria dos portugueses, como a votação maciça no PS de Mário Soares e no PSD de Sá Carneiro tinha demonstrado nas eleições para a Constituinte, o que queria era o fim do PREC e sopas e descanso.
O que aconteceu realmente no 25 de Novembro, apesar das dezenas de livros, ensaios e investigações académicas e jornalísticas, continua ainda a ser motivo de acesas discussões. Apesar dos testemunhos dos seus protagonistas, muitos deles ainda vivos, sobre o que fizeram, que instruções tinham e quem as deu, não há maneira de se chegar a uma verdade historicamente aceite e socialmente consensual.
E isto foi apenas há 50 anos. Como esperar, então, que sobre acontecimentos ocorridos há mais de 200 não só os historiadores se ponham de acordo, como, mais importante, a percepção popular sobre eles e sobre personagens que marcaram e mudaram a História seja unânime? Não, Napoleão não destruiu as Pirâmides. Não, Napoleão não viu Maria Antonieta ser guilhotinada. E não, Napoleão não era um arrivista provinciano obcecado com os favores de Josefina e a quem ela os distribuía, como retrata o filme. Napoleão era o inimigo das monarquias absolutas, o pai do Código Civil, o defensor da Constituição, o criador dos liceus, e um génio militar. Ou não era. Os historiadores continuam tão divididos sobre a personagem como estavam há dois séculos. Duas excelentes biografias recentes, entre muitas, mostram perspectivas diferentes. Para Andrew Roberts (Napoleon, a Life, 2015) Napoleão era mesmo um génio e um libertador. Para Adam Zamoyski (Napoleon, a Life, 2018) era um génio, sim, mas de marketing, tendo habilidosamente construído o seu mito com mentiras e falsas verdades.
Como chegar assim à verdade histórica? É certo que a “liberdade artística” permite que se tomem certas liberdades com a verdade e, como cuspinhava Ridley Scott sobre os historiadores que criticam o rigor factual do seu filme: “Desculpa lá, pá, estavas lá? Não? Então cala a boca”. Mas no 25 de Novembro havia muita gente que estava lá, que ainda está viva, e que não deve, nem pode, calar a boca. O papel dos historiadores é reconstituir com rigor factual o que aconteceu e interpretá-lo no contexto da época e integrá-lo na longa marcha do tempo. Factos são factos.
E sim, se ainda hoje não sabemos, pelo menos enquanto os arquivos do PCP e de Moscovo não estiverem acessíveis, qual a intenção e divisões dos comunistas no 25 de Novembro, pelo menos uma coisa sabemos: Napoleão mandou mesmo dizer a Josefina que não se lavasse três dias antes de chegar. Pelo menos isso é certo. Mas também há quem duvide.