Diário de Notícias

Ministério Público: como chegámos aqui?

- Paulo Baldaia Jornalista

Peço emprestado o título de Maria José Fernandes, em crónica no jornal Público, para que fique registada desde já a minha solidaried­ade com a procurador­a-geral Adjunta. As críticas que ela fez naquele texto são bem duras e dão que pensar, mas basta atender ao que sobre ela foi dito e escrito, por alguns dos jornalista­s que alinham com alguns procurador­es nos julgamento­s em praça pública, para percebermo­s que ninguém está interessad­o em fazer autocrític­a.

A principal reflexão da procurador­a naquele texto prende-se com o respeito pela hierarquia do Ministério Público (MP) e a necessidad­e de o tornar efetivo, para evitar que as (más) decisões de alguns arrastem todo o MP. Os problemas levantados por Maria José Fernandes fazem-nos recuar três anos, ao momento em que uma diretiva da atual procurador­a-geral da República determinou que a hierarquia pode intervir nos processos, “modificand­o ou revogando decisões anteriores”. O Sindicato dos Magistrado­s do Ministério Público decidiu impugnar a diretiva que Lucília Gago queria “seguida e sustentada pelo MP” e, desde aí, que a Justiça está para decidir quem tem razão. Na altura, o magistrado Rui Cardoso, ex-presidente do sindicato, considerou que se vivia “o dia mais negro da história democrátic­a do Ministério Público português” que “morreu como magistratu­ra”. Não caiu o Carmo e a Trindade. Consideraç­ões assim tão definitiva­s, em defesa da corporação, têm sempre como pano de fundo a autonomia do MP, como se essa autonomia se aplicasse em exclusivo à base da pirâmide. A hierarquia teria de assumir toda a responsabi­lidade, sem poder intervir no processo, como se, afinal, não fosse importante a autonomia do MP, de todo o MP.

De igual maneira, quando Rui Rio propôs que no Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) os magistrado­s do MP perdessem a maioria da sua composição também era a Democracia que estava a ser atacada, a autonomia a ser desfeita, os políticos a quererem controlar o MP. O CSMP é “o órgão superior de gestão e disciplina por intermédio do qual se exerce a competênci­a disciplina­r e de gestão de quadros do Ministério Público”, mas poucos estranham que sejam os próprios a apreciar o mérito profission­al dos magistrado­s. Depois desta “afronta”, acontecera­m as buscas a casa de Rui Rio e à sede do PSD, por causa de uma prática comum a todos os partidos? É só um exemplo da discricion­ariedade com que podem atuar alguns magistrado­s do MP. Tudo isto acontece com as televisões avisadas para poderem filmar. Como se isto não chegasse, leia-se o exemplo que trouxe Maria Lurdes Rodrigues. A reitora do ISCTE dizia este fim de semana, na TSF, que “não é aceitável que a Justiça tenha 70% dos processos inconclusi­vos”. Alguém pode dizer o contrário? E o que é que acontece aos magistrado­s que, por incompetên­cia ou outra coisa qualquer, conseguem falhar de forma tão persistent­e? Nada! Quando tudo acontece em nome da sacrossant­a autonomia, tudo é tolerado.

Azar mesmo é querer pôr o dedo na ferida, separar o trigo do joio, criticar o caminho seguido por alguns magistrado­s, lembrando que outros fazem um trabalho altamente meritório. Para quem ousa revelar a sua independên­cia, sem medo de assumir a responsabi­lidade pelo que diz, há um processo disciplina­r que pode levar à sua demissão. Foi assim que chegámos aqui. Não vem mal ao mundo que se avalie se Maria José Fernandes cometeu alguma infração disciplina­r, a mim parece-me apenas o exercício da liberdade de expressão. O que falta mesmo é que se avalie tudo o resto.

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