Cartas de James Baldwin a um mundo em chamas
A antecipar o centenário de James Baldwin, que se assinala no próximo ano, acaba de chegar às livrarias uma das obras de ensaio fundamentais do autor de Se Esta Rua Falasse. Chama-se Da Próxima Vez, o Fogo e confirma o seu legado de pensador maior, capaz da mais límpida psicanálise da América do século XX.
T “u pensas em ti como um homem de cor. Eu penso em mim como um homem.” Talvez o leitor conheça estas palavras de Sidney Poitier pronunciadas no filme Adivinha Quem Vem Jantar (1967), durante uma discussão entre pai e filho, que rompe com a bafienta postura geracional do primeiro. São palavras indissociáveis da imagem hollywoodiana do ator e vêm-nos à memória a propósito de um ensaio de James Baldwin (1924-1987), Aos Pés da Cruz, onde se lê: “De todos os países ocidentais, a América foi a que esteve na melhor posição para provar a inutilidade e obsolescência do conceito de cor. (…) A cor não é uma realidade humana ou pessoal; é uma realidade política. (…) O valor que se atribui à cor da pele é sempre, em qualquer parte e para todo o sempre, uma ilusão.” O ensaio encontra-se no livro Da Próxima Vez, o Fogo, agora lançado pela Alfaguara, com tradução de Valério Romão, e tem qualquer coisa de sopro vital num momento em que, do ponto de vista mediático (incluindo o do próprio cinema), a “cor” é cada vez mais celebrada, mas não necessariamente objeto de reflexão.
Ainda sobre o filme de Stanley Kramer, Adivinha Quem Vem Jantar: é curioso saber que Baldwin teve um olhar crítico sobre ele, escrevendo noutro ensaio, The Devil Finds Work, sobre a sua qualidade envernizada e vocação para agradar exclusivamente ao público branco. A saber, a história de um médico afro-americano (Poitier) que se vai casar com uma mulher branca estava em tudo longe de poder ser compreendido pela comunidade negra; não era sequer um contexto social que se aproximasse do seu quotidiano. E porém, não deixamos de ver na frase daquele filho negro uma das ideias de Baldwin, transmitidas no texto publicado em 1963.
Note-se que o referido The Devil Finds Work – livro de memórias com um olhar sobre a política racial do cinema americano – não tem uma edição portuguesa. Mas a avaliar pelo ritmo a que a literatura do romancista, ensaísta, poeta e dramaturgo está a ser redescoberta, é de fiar que venha a ser publicado entre nós num futuro próximo. Por uma razão simples: James Baldwin é uma das vozes mais fulgurantes e lúcidas do século XX norte-americano, e a sua prosa tem vindo a renascer das cinzas do tempo.
Foi mais ou menos depois da estreia do documentário I Am Not Your Negro – Não Sou o Teu Negro (2016), de Raoul Peck, pela Midas Filmes, que se deu o fenómeno. Através desse filme, que se baseia num manuscrito inacabado do autor sobre três figuras centrais da luta afro-americana – Medgar Evers, Malcolm X e Martin Luther King –, a essência do seu pensamento foi recuperada e trouxe uma lufada de ar fresco ao panorama. De repente, havia algo de “novo” a ser dito sobre a grande questão americana.
Pouco depois de I Am Not Your Negro, a Alfaguara começou o que parece ser uma operação editorial tempestiva: publicou o romance Se Esta Rua Falasse (de 1974), entretanto adaptado ao cinema por Barry Jenkins, seguiu-se Se o Disseres na Montanha (o primeiro título de Baldwin, de 1953), O Quarto de Giovanni (de 1956), e agora chega-nos a prosa ensaística Da PróximaVez, o Fogo, em jeito de pré-comemoração do centenário do escritor, que se assinala no próximo ano. Até no filme Crónicas de França (2021), de Wes Anderson, a personagem de Jeffrey Wright é assumidamente inspirada em James Baldwin...
Vamos falar de amor?
Da Próxima Vez, o Fogo é composto por dois textos – o primeiro, uma carta do autor ao seu sobrinho, a aproveitar o centenário da abolição da escravatura nos EUA para lhe falar das subtilezas filosóficas da integração; o segundo, o tal brilhantíssimo ensaio, Aos Pés da Cruz (com o subtítulo Carta de Uma Região da Minha Mente), que aborda a religião e a raça dentro de um estilo de narrativa tão colada à pele quanto friamente intelectual. Vejamos, Baldwin tem essa imensa capacidade de emocionar o leitor pela articulação das suas ideias, ao mesmo tempo que produz perspetivas surpreendentes sobre o que parece já muito revisitado.
Não se vislumbram quaisquer clichés neste pensador e crítico cultural que, aquando do lançamento do livro em 1963, deu um contributo inestimável ao Movimento dos Direitos Civis, ao colocar a lupa do seu discernimento sobre aquilo que impede brancos e negros de encontrarem um chão comum. Segundo Baldwin, é no amor que reside a libertação de ambas as partes. E isto não constitui uma ideia meramente reciclada: “O amor faz cair as máscaras sem as quais receamos não saber viver e com as quais sabemos não conseguir viver. Uso aqui a palavra «amor» não somente no seu sentido subjetivo, mas como estado de existência ou estado de graça – não no sentido ingénuo americano de ser tornado feliz por alguém, mas no difícil e universal sentido de procura, ousadia e crescimento.” A tese do autor é a de que as tensões raciais “têm pouco que ver com uma animosidade real – na verdade, é o contrário – e só simbolicamente têm que ver com a cor. Estas tensões têm a sua raiz nas mesmas profundezas de onde o amor ou o desejo de matar emergem.”
São pedaços de prosa como esta que torcem a consciência e apagam o disco formatado dos discursos que insistem em ver a realidade a preto e branco, sem elaborar sobre uma certa dimensão de fundo. Repare-se, por exemplo, na força cristalina destas palavras: “Não odiar aquele que te odeia e que tem o pé sobre o teu pescoço requer uma grande resiliência espiritual, e não ensinar o teu filho a odiar requer uma sensibilidade e uma caridade ainda mais miraculosas.”
Tal como Luther King teve um sonho, Baldwin disserta em Da Próxima Vez, o Fogo sobre a possibilidade do fim do pesadelo racial. Este é o seu manifesto, e um dos textos mais edificantes a ler num tempo em que se saram feridas históricas com pensos rápidos e se vê a política em degradação perante “o desejo de matar” que emerge um pouco por todo o lado.