Diário de Notícias

Como a preto branco se conta com brilhantis­mo uma história coreana

Versão portuguesa de A Espera, de Keum Suk Gendry-Kim, chega-nos pela Iguana. Relato cheio de sensibilid­ade de uma mãe que se separou do filho por causa da guerra.

- TEXTO LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Visitei três vezes a Coreia do Sul e em duas delas estive mesmo nos célebres pavilhões azuis, o único ponto da zona desmilitar­izada de Panmunjom em que se pode entrar (uns metros!) na Coreia do Norte sem arriscar levar um tiro dos guardas que se mantém atentos aos movimentos de quem vem de Seul. Pyongyang, a capital da Coreia do Norte, fica a uns meros 160 km, mas isso é não ter em conta que se trata da fronteira mais minada do mundo. E que a liderança norte-coreana, empoderada pelas armas nucleares, insiste numa retórica belicosa contra o Sul, com o neto que manda hoje frustrado pelo avô, Kim Il-sung, ter falhado há 70 anos a reunificaç­ão pela força.

Uma extraordin­ária novela gráfica agora editada em Portugal vem relembrar que essa divisão da Península Coreana, que dura desde 1945, é muito mais do que um ponto de altíssima tensão geopolític­a, tantas vezes notícia de jornal mundo fora. Para os 75 milhões de coreanos, a norte e a sul do famoso Paralelo 38, o medo do regresso da guerra subsiste, assim como a tristeza da separação de um povo em duas metades quase sem contato. E há ainda aqueles, como as personagen­s de A Espera, que não se conformam com a divisão da própria família.

Keum Suk Gendry-Kim, autora sul-coreana já muito premiada por anteriores novelas gráficas, escreveu em 2020 este A Es

Keum Suk Gendry-Kim pera inspirada pela história da mãe, que durante a guerra de 1950-1953, se separou da irmã, que ficou na Coreia do Norte e da qual nada mais soube. Dois anos antes, tinha-se dado o mais recente encontro de famílias coreanas divididas, evento altamente emotivo, em que irmãos, pais e filhos, e até maridos e mulheres, se reencontra­m quase incapazes de se reconhecer­em tantos os anos que passaram.

Controlado ao pormenor pelo regime de Pyongyang, que escolheu a dedo quem podia ir do seu lado (já na Coreia do Sul, o sistema de seleção foi um sorteio), o encontro de 2018, o 21.º de uma série iniciada em 2000, aconteceu no Monte Kumgang, território da Coreia do Norte.

Neste A Espera, ficção que tem uma evidente parte de inspiração pessoal e outra de investigaç­ão da autora, Song Gwija tem 92 anos e sonha reencontra­r o filho Kim Sang-il que perdeu de vista quando fugia para o Sul no final de 1950. A ação do livro passa-se em duas épocas: a atualidade, e o tempo da Guerra da Coreia, que foi o primeiro grande conflito da Guerra Fria.

Ocupada pelo Japão desde 1910, a Coreia viu tropas soviéticas receberem em 1945 a rendição nipónica no final da Segunda Guerra Mundial a norte do Paralelo 38, enquanto os americanos faziam o mesmo a sul. Estava predestina­da a criação das rivais República Democrátic­a Popular da Coreia e República da Coreia: a primeira, uma ditadura dinástica empobrecid­a pelo isolamento apesar do arsenal nuclear; e, a segunda, uma democracia dotada de uma economia de sucesso.

Nos últimos tempos foram publicados em Portugal interessan­tes livros sobre a História da Coreia, e é comum as editoras apostarem em relatos de desertores do Norte, que contam as misérias atuais do país de Kim Jong-un, o tal neto do fundador da Coreia comunista. Mas este Espera é especial pela força da narrativa, seja pela genialidad­e do traço de Keum Suk Gendry-Kim, seja pela naturalida­de com que a autora relata uma vida tão banal como trágica.

Já depois das minhas idas à Coreia do Sul, conheci o mais antigo membro da comunidade coreana em Portugal. Fica aqui um excerto do perfil que publiquei, pois mesmo sem ter havido divisão da família, não deixou de me vir à cabeça este testemunho pessoal da Guerra da Coreia quando estava a ler A Espera: “Nascido em 1949, Won Chong-song tinha 1 ano quando começou a Guerra da Coreia. Desses três anos terríveis diz não ter memória, sabendo apenas aquilo que a mãe lhe contou: a fuga da sua Chung Buk natal num comboio para sul, assim que se soube da aproximaçã­o das tropas norte-coreanas, a paragem súbita da locomotiva porque afinal os invasores comunistas já iam à frente, o leite que secou no peito da mãe e as papas de arroz para alimento, o pai como auxiliar do Exército sul-coreano, que com o apoio dos Estados Unidos conseguiri­a repor a fronteira mais ou menos no Paralelo 38 como antes da guerra. ‘Recordo-me da destruição, da pobreza e da festa no dia em que a Cruz Vermelha vinha à escola dar leite. Lembro-me também de brincar num tanque destruído’, conta-me Won, hoje produtor de compotas de fruta no Caramulo, a terra portuguesa onde se instalou ainda jovem.”

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Iguana 246 páginas 20,95 euros
A ESPERA Iguana 246 páginas 20,95 euros

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