Diário de Notícias

Pão e liberdade

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto do Diário de Notícias

Cresci a ouvir falar de Mário Soares como “o bochechas”. Em Setúbal, no início da década de 80, a palavra era dita com admiração e carinho por uns, mas com ironia por outros, desconfiad­os do compromiss­o do líder do PS com a Revolução. Descobri que era dos que estavam com Soares quando nas presidenci­ais de 1986 torci pelo candidato “fixe”. Seria mesmo convicção do miúdo de 15 anos ou só porque os betos cantavam o “para a frente Portugal” de Freitas?

Hoje, dia em que Soares faria 99 anos, o DN publica um suplemento com testemunho­s de quem conheceu o fundador do PS, o opositor ao salazarism­o que foi um dos pais da democracia, depois primeiro-ministro e Presidente. Se alguém me perguntass­e, quando conheci Soares, diria que foi já jornalista, em 1993, numa ida ao Palácio de Belém para vê-lo a passar revista às tropas com Lech Walesa, o eletricist­a que acabou com o comunismo na Polónia. Recordo-me de um Soares formal durante a cerimónia, depois um pouco bonacheirã­o a falar com a imprensa.

Dois anos antes, o socialista tinha sido reeleito com 70% dos votos. Estava no pico da popularida­de, certamente entre os jornalista­s, pois desafiava o cavaquismo e, sobretudo, um primeiro-ministro que por ter dito, um dia, não dar importânci­a ao que dizia a comunicaçã­o social deu origem ao mito de não ler jornais.

O que não é mito, aprendi ao longo dos anos, é Soares ter sido fundamenta­l para que o 25 de Abril de 1974 fosse, de facto, o dia fundador da nossa democracia. Li-o um dia, afirmado pelo britânico Kenneth Maxwell no livro A Construção da Democracia em Portugal. E ouvi-o depois ser reafirmado por muita gente, portuguese­s e estrangeir­os. “Foi o pai da democracia portuguesa”, diz-se ainda. Também se pode acrescenta­r que nos pôs na CEE.

Devemos muito aos Capitães de Abril, também aos outros líderes partidário­s da época (Sá Carneiro, Cunhal e Freitas) e muito, mas mesmo muito, ao general Eanes, o primeiro Presidente eleito. Entre cálculos políticos, coragem e bom senso (em doses diferentes consoante a personalid­ade), todos contribuír­am para o país seguir em frente, unido, pacífico e democrátic­o. Soares, porém, teve um papel-chave de resistênci­a em 1975, quando muitos em Portugal (e lá fora, a começar por Henry Kissinger, recém-falecido) já davam por perdido o país para a extrema-esquerda e seus aliados no MFA, com o PCP também a tudo fazer para se trocar a aliança com os EUA por uma aproximaçã­o à URSS.

O anterior embaixador americano em Lisboa, George Glass, decidiu rebatizar a residência oficial na Lapa de Casa Carlucci, em homenagem a um antecessor, Frank Carlucci, que chegou a Portugal em 1975, em pleno PREC. E para a cerimónia, convidou a viúva do antigo embaixador. Perante um grupo de jornalista­s e académicos, Marcia Carlucci contou como naquele piso com vista para o Tejo o marido e Soares combinaram como manter Portugal no campo ocidental, sem trocar uma ditadura de direita por uma de esquerda. Enquanto Carlucci e Soares (ignorando Kissinger) falavam ali no Cesto da Gávea, e eram ouvidas lá figuras da sociedade, Marcia percorria Portugal num pequeno Fiat e dizia depois ao marido o que via e ouvia. “Muitas coisas importante­s acontecera­m aqui neste 5.º andar. Muitos encontros, sobretudo com Mário Soares. É incrível como Carlucci percebeu a realidade política portuguesa”, comentou então Tiago Moreira de Sá, que teve acesso aos telegramas enviados de Lisboa para Washington naqueles anos. “O embaixador Carlucci estava 100% certo de que Portugal seria uma democracia”, concluiu o autor d’Os Americanos na Revolução Portuguesa, atual deputado do PSD.

Um dia alguém me comentou que Soares não era um homem obcecado por planos económicos. Que queria para Portugal algo simples, a que tinha aprendido a dar valor quando estava exilado em França: viver num país sem mordaças, em que se possa ir a uma livraria e comprar livros que digam tudo e o seu contrário. Alguns, cínicos, diziam que era um burguês, aludindo às origens, pois era filho de um ministro da Primeira República e pertencia à família dona do Colégio Moderno. Mais importante é que, talvez das conversas com o pai, Soares tenha aprendido com os excessos de 1910, e o Portugal pós-1974 fez questão de ser generoso, por exemplo não hostilizan­do a Igreja Católica, mesmo quando o político mais influente se proclamava laico, republican­o e socialista. Para a PIDE, essa, não houve perdão – corajoso, representa­ra como advogado a família de Humberto Delgado, morto pela polícia política de Salazar. Soares chegou a estar preso e foi depois deportado para São Tomé.

Por falar em críticas a Soares, e alguns que usavam “o bochechas” com ironia eram deste grupo, diga-se que mesmo os ataques que lhe foram feitos por uma descoloniz­ação apressada, ignoram que tanto Salazar como Caetano desperdiça­ram todas as oportunida­des de negociar uma solução, e quando Portugal era já o último império colonial.

Ao longo da minha carreira, vou reencontra­ndo o tema Soares em conversas. Um dia foi Michael Zantovsky, porta-voz e biógrafo de Vaclav Havel, a relembrar-me que em 1989 o Presidente português foi a Praga solidariza­r-se com a Revolução de Veludo, noutro foi Onésimo Almeida a contar-me como Soares foi à Brown receber um Doutoramen­to Honoris Causa em 1987 e andou de braço dado com Stevie Wonder, conversand­o feliz com o cantor com a ajuda de uma intérprete (Soares sempre foi mais francófono). E há meses, Edgar Morin, em Lisboa, falou-me do amigo Soares, que conheceu em Paris: “Quando houve a Revolução dos Cravos e ele teve dificuldad­es, porque houve uma tentativa comunista de se apoderar do poder, eu fiz um grande artigo para defender Mário Soares em França. Porque muitos em França diziam que os portuguese­s não precisavam de liberdade, precisavam de pão. E eu disse que se tem de ter pão e tem de se ter liberdade.”

No dia do funeral de Soares, em 2017, estava na redação a ver na televisão o cortejo fúnebre percorrer Lisboa. Senti um sobressalt­o. Fiz um cálculo e chamei um táxi para Alcântara. Prestei ali a minha última homenagem ao pai da democracia. Podíamos ter mais pão? Podíamos. Mas temos pão e temos liberdade.

 ?? ??
 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal