Diário de Notícias

A ideia de uma “cara-metade” carrega consigo a sensação de se existir pela metade, como se de algo muito negativo se tratasse. Como se quem está sozinho (leia-se, sem manter uma relação amorosa estável) fosse inferior e se sentisse necessaria­mente mais tr

- Psicóloga clínica e forense, terapeuta familiar e de casal

Éfrequente ouvir-se dizer que uma determinad­a pessoa “é a minha cara-metade”, que é como quem diz, “alguém que me completa e me faz feliz”. Falamos de uma ideia romântica de duas metades que encaixam. Será esta ideia, em si mesma, perigosa, na medida em que traduz a crença de que, sem uma relação amorosa, a pessoa existe pela metade? Somos seres incompleto­s quando não temos uma relação de namoro, união de facto ou casamento?

A ideia de uma “cara-metade” carrega consigo a sensação de se existir pela metade, como se de algo muito negativo se tratasse. Como se quem está sozinho (leia-se, sem manter uma relação amorosa estável) fosse inferior e se sentisse necessaria­mente mais triste e infeliz.

Sabemos que uma relação amorosa gratifican­te (e sublinho a bold o adjetivo de forma intenciona­l, pois não basta manter uma relação – é preciso que esta se revista de caracterís­ticas positivas, como o respeito, a intimidade, a capacidade de escuta, a tolerância e a flexibilid­ade) aumenta a sensação de bem-estar e potencia emoções agradáveis. Os casais que se sentem felizes na sua relação de conjugalid­ade tendem também a expressar maior satisfação em outras áreas da sua vida, como se existisse um efeito de contaminaç­ão positiva. Isto é inquestion­ável e muito benéfico para o seu bem-estar psicológic­o.

O que pode ser preocupant­e é a ideia de que, sem este tipo de relação afetiva, e tantas vezes por opção – sim, as pessoas têm o direito a escolher não manter uma relação amorosa –, se é forçosamen­te mais infeliz. Quase merecedor de sentimento­s de pena por parte das outras pessoas… “coitado, está sozinho”; “já viste há quanto tempo não tem ninguém?”.

É neste contexto que se reveste de especial importânci­a refletir sobre a noção de autoconcei­to e autoestima. O autoconcei­to é uma imagem compósita de: a) o que pensamos que somos; b) o que pensamos que conseguimo­s alcançar; c) o que pensamos que os outros pensam de nós, e d) o que gostaríamo­s de ser. Por seu turno, a autoestima relaciona-se com a avaliação pessoal do nosso autoconcei­to – diz respeito ao grau relativo de valor ou aceitação que as pessoas consideram que o seu autoconcei­to tem.

Olhando para as estas dimensões do autoconcei­to, percebemos que alguém que acredita nesta ideia da “cara-metade” e que não tenha uma relação de conjugalid­ade gratifican­te facilmente poderá ser levado a pensar que: a) “não existo de uma forma plena e completa”; b) “o que tem impacto negativo nas minhas conquistas e aspirações”, e c) “os outros veem-me como inferior e inacabado”. Quem pensa assim, vive em constante perseguiçã­o da outra metade, de maneira a sentir-se inteiro, avaliando o seu autoconcei­to, necessaria­mente, de uma forma mais negativa.

Diria que esta forma de pensar é efetivamen­te perigosa, desviando-nos do cerne – gostarmos de nós mesmos, pelo que somos, e não pelo que temos ou por quem temos ao nosso lado.

Manter uma relação amorosa satisfatór­ia e recompensa­dora é muito importante e tem um impacto positivo na forma como a pessoa se sente e interage, mesmo noutras esferas da sua vida. É algo que acrescenta, mas que não deve ser entendido como o preenchime­nto de algo que está vazio e inacabado.

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