Diário de Notícias

Silêncio! O cinema entra música adentro!

- TEXTO RUI PEDRO TENDINHA

BIOGRAFIA A vida e obra de Leonard Bernstein por Bradley Cooper. Maestro é uma obra-prima orgulhosam­ente transborda­nte, candidato a Melhor Filme do Ano. É sobretudo para ser visto em grande ecrã, mesmo que esteja já com data de estreia na Netflix (dia 20).

Martin Scorsese e Steven Spielberg apoiaram durante anos a produção de um sonho pessoal de Bradley Cooper: trazer para o grande ecrã a vida do lendário maestro e compositor Leonard Bernstein. O chamado projeto de “amor” que só um estúdio como a Netflix poderia bancar. Finalmente está aí nos cinemas (na Netflix só um pouco mais tarde) o resultado final, depois de uma passagem na Mostra deVeneza, na qual o júri não quis premiar, mas a imprensa foi quase unânime. Triunfo artístico e bilhete garantidos para a temporada dos prémios – para a semana já saberemos os nomeados para os Golden Globes e deve ser confirmado algum do favoritism­o das interpreta­ções: Bradley Cooper e Carey Mulligan.

Entre o preto e branco artístico e a cor triunfal, este olhar biográfico pela vida de Leonard Bernstein vai da sua juventude ao final dos seus dias, através de um encadear de momentos marcantes. Essa opção de retalhar “momentos” é deliberada e poderá fazer alguma impressão ao espectador mais habituado à formatação do biopic arrumadinh­o.

De facto, na desarrumaç­ão pode estar o ganho. Aí e na maneira como a estrutura do filme sofre um golpe: afinal, é também sobre a mulher, Felicia Montealegr­e, atriz que se apaixonou por ele numa fase onde o maestro vivia com um namorado, o clarinetis­ta Oppenheim. A vida de ambos parece sempre feita de uma moeda de duas faces, entre o sucesso de Leonard, as provações da criação de uma família e a doença de Felicia.

O guião de Josh Singer e Bradley Cooper tem ainda outra guinada: explorar a sexualidad­e de Leonard, alguém que nunca conseguiu esconder a sua atração por homens e que chegou a provocar uma crise matrimonia­l. É pois uma evocação do homem e do músico, em estrito senso.

Nessa mecânica bem engenhosa de momentos soltos há sobretudo um cuidado imenso pelos tempos e sentidos do trabalho musical. Tudo menos aquela lógica do toque e foge das suas conquistas musicais. Não, a história fica com a música, com o tempo do labor e da criação musical, não é, de todo, nada a despachar.

Cooper assume o que alguns biopics não têm coragem: o caráter de homenagem explícita, mas daquelas homenagens que não se afastam das complexida­des íntimas de um homem com voracidade pelo prazer e criação. Mas também um tributo à figura de Felicia Montealegr­e, que não é apenas a esposa, mas sim o bater do coração e razão do maestro. Uma mulher de corpo inteiro e sempre também a responder como artista de valor próprio.

Para quem mencionou o nariz prostético da caracteriz­ação e vê o desempenho de Cooper na esteira do exibicioni­smo de atores de Hollywood, o filme fala por si próprio. A resposta está nos seus olhos brilhantes, com cor ou sem ela. Olhos que dão um brilho à paixão de Leonard Bernstein. Uma interpreta­ção para além das proezas de mimetismo, um verdadeiro caso de amor, segurament­e ainda num patamar superior aos incríveis Cillian Murphy em Oppenheime­r, de Chris Nolan, Paul Giamatti em Os Excluídos, de Alexander Payne, ou Andrew Scott em All of Us Strangers, de Andrew Haigh, filme queer britânico, que Portugal arrisca a não ter direito a estreia.

Para lá do famoso nariz judeu “implantado”, há um transborda­r de vida no rosto de Cooper que é flagrante, para não dizer emocionant­e, como se compreende­sse o desejo de liberdade naquele corpo, naquela alma.

Mas a patine de estado de graça do filme acontece quando a câmara nos açambarca para entrarmos literalmen­te dentro da melodia e das notas musicais de Bernstein. O tal milagre de entrarmos no interior central da música. Os mais céticos vão dizer que é o lado de musical avulso, mas não se trata disso: Cooper está a oferecer uma experiênci­a imersiva, mesmo que esta palavra tão na moda possa sugerir desvios digitais. A imersão tem a ver com uma sensação de transporte naquilo que de mais irracional a música nos transmite. Feito conseguido através de uma gestão admirável de tempos dramáticos e, essencialm­ente, um jogo entre silêncios e as notas musicais. Coisa cósmica e só concretizá­vel graças ao luxo dos milagres óticos do diretor de fotografia Matthew Libatique, artista que filma o interior da pauta da música de Bernstein com uma voracidade perfeita para o tom ilusionist­a desses momentos.

Mesmo pensando que existe um arco temporal alargado, Maestro começa por impression­ar quando aceita emular um feeling romântico de numa América dos Anos 1950 onde o sonho americano tornava o maestro e a mulher num postal de realeza. Um postal de um caráter pueril e saudosista, próximo de uma utopia de significat­ivo fulgor. Pensar-se-á em nostalgia clássica que advirá de um talento de direção de Cooper e no peso dos diálogos engendrado­s numa sofisticaç­ão que já se sentia em Assim Nasce Uma Estrela, agora, por certo, olhado com outros olhos. Esse remake que se pensava que era ligeirinho já tinha muito do “corpo” e do peso deste Maestro, apoteose estrondosa de um ideal de elegância clássica de que o cinema americano mainstream já precisava há muito.

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Um filme que celebra a música e uma vida em cheio.

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