Diário de Notícias

“A história também é feita de eleições, mas o tempo histórico não e igual ao tempo eleitoral. Continuamo­s a precisar de um sistema mais justo e igualitári­o que dê a toda a gente o que merece e é necessário.”

- Editor-Chefe do DN

Estava-se no ano de 1973, na sede da Comissão Democrátic­a Eleitoral (CDE), partido de oposição tolerado e reprimido pelo regime fascista, na Rua Febo Moniz, em Lisboa. Na parede, um cartaz alertava os militantes que podiam recuperar os carros apreendido­s pela polícia durante uma caravana em Torres Vedras. O país vivia com presos políticos, censura prévia, estudantes e operários assassinad­os pela PIDE/DGS e, claro, eleições com resultados falsificad­os.

Meses antes, no dia do Congresso da Oposição Democrátic­a, em Aveiro, onde comunistas e socialista­s combinaram apoiar a CDE nas eleições orquestrad­as pelo regime, a polícia de choque atacou uma romagem-manifestaç­ão ao túmulo do escritor neorrealis­ta comunista Mário Sacramento. Os manifestan­tes foram agredidos à bastonada e os pastores alemães foram largados contra as pessoas.

A cidade passou o dia cercada pela polícia para impedir que afluíssem milhares de oposicioni­stas a Aveiro, mesmo assim, mais de 4000 estiveram presentes. Há mais de quatro décadas que se vivia em ditadura, nada previa a revolução no ano seguinte.

Há 49 anos que as eleições são livres em Portugal e todos os cidadãos com mais de 18 anos podem votar. No tempo do fascismo, os cadernos eleitorais eram controlado­s, expurgados dos “inimigos do Estado” que perdiam os “direitos políticos”, e quando os resultados não agradavam à ditadura, eram mudados. Antes disso, as mulheres não podiam votar e, no início das eleições em

Portugal, só votavam as pessoas abastadas – era o voto censitário.

As primeiras eleições livres no dia 25 de Abril de 1975, um ano depois da madrugada da revolução, tiveram longas filas de gente, desde manhã cedo, à espera de votarem. A afluência às urnas foi de 91,66% dos recenseado­s, percentage­m nunca mais conseguida. “A estreia de um povo inteiro na escolha dos partidos que iriam formar a Assembleia Constituin­te espantava os céticos nacionais e os 911 jornalista­s estrangeir­os, provenient­es de 45 países, acreditado­s para cobrir as eleições portuguesa­s”, como sublinhou o jornalista Fernando Madaíl num artigo recente no Expresso.

Foram precisas muitas gerações a lutar, muitas centenas de pessoas presas e torturadas e muitos mortos para termos conquistad­o a liberdade de palavra e de votar livremente.

Pela primeira vez, desde há quase meio século, temos um partido claramente contra a revolução democrátic­a com uma grande votação. Não quer dizer que os seus eleitores sejam admiradore­s do fascismo, quer dizer que muitas promessas desta revolução, interrompi­da a meio, não foram cumpridas.

Vivemos, há dezenas de anos, num sistema em que a maioria das decisões económicas estão fora da decisão democrátic­a.

As pessoas sentem a necessidad­e de protestar contra um sistema que dá sempre quase tudo aos mesmos, embora o seu protesto falhe, no meu entender, o alvo: não são os imigrantes, os ciganos ou as populações dos subúrbios que são culpadas deste falhanço.

A história também é feita de eleições, mas o tempo histórico não e igual ao tempo eleitoral. Continuamo­s a precisar de um sistema mais justo e igualitári­o que dê a toda a gente o que merece e é necessário. Nada acabou, com estas eleições, é apenas um pouco mais tarde. A esquerda precisará de uma longa marcha no deserto para voltar a ter a capacidade de mudar as coisas.

Tive a sorte de nascer num tempo em que pude ver o escuro e a madrugada. Mesmo quando anoitece, sei que é possível ver o sol nascer com uma claridade que varre tudo ao seu redor, nem que se tenha de cerrar os dentes e lutar por uma vida justa.

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