Julianne Moore a portar-se mal no século XVII
O drama de época reafirma a sua saúde através de uma nova entrada expressiva: a série Mary & George acompanha as táticas de mãe e filho no xadrez social da Inglaterra jacobina. Julianne Moore está no ponto. Para ver na SkyShowtime.
Poucas séries começam com frases tão espirituosas como esta: “Se eu fosse um homem e tivesse a tua aparência, governaria a porra do planeta.” É o que uma mãe desenrascada, e com falta de escrúpulos, diz ao seu filho mais novo em pleno século XVII, quando identifica nos atributos físicos do rapaz crescido uma espécie de kit de salvamento para tirar a família da cepa torta. Qual plano em marcha, depois de uma temporada de educação hedonista em França, para aprender que os “corpos são apenas corpos” e o sexo não é um exclusivo entre homens e mulheres, o dito benjamim, George (Nicholas Galitzine), revela-se pronto para responder aos anseios de ascensão social da progenitora, Mary Villiers ( Julianne Moore). Exatamente de que maneira? Nada mais, nada menos do que acedendo ao leito de James Stuart, o rei da Escócia e da Inglaterra, conhecido por ter favoritos.
Em estreia na SkyShowtime, Mary & George, série de sete episódios criada por D.C. Moore, explora este despudorado jogo de corte, que tem na protagonista Julianne Moore a sua figura aguerrida, astuciosa e sem papas na língua, com um claro potencial de vilã, embora sujeita à vulnerabilidade humana de quem não nasceu em berço de ouro. Uma personagem verídica (de resto, como todas as outras da série), às vezes a lembrar um nadinha o patriarca de Succession, no modo de cuspir impropérios – mas digamos que a comparação não vinga.
Seja como for, a promessa de espetáculo de época, entre trajes e banquetes, passa tanto pelas movimentações pragmáticas de Mary – que pelo caminho também adota para si a máxima “corpos são apenas corpos” e envolve-se com a dona de um bordel –, como pelo laborioso ato de sedução de George, que terá de competir com o conde de Somerset, atual favorito de Sua Majestade, para ganhar o direito ao vale dos lençóis desse monarca e, consequentemente, ao poder de influência sobre ele. Uma jogada de risco, que se trata de um facto histórico (há cartas de amor a provar a relação), e que estará sempre sujeita aos olhares dos aristocratas da Inglaterra jacobina, para além das tensões com Espanha, mais tarde.
Como já deu para perceber por este princípio de aventura carnal, Mary & George não poupa em sexo (desde logo, orgias), intrigas e conspiração, permitindo até um papel de alguma relevância ao filósofo Francis Bacon, que a certa altura tenta substituir MaryVilliers na qualidade de conselheiro do jovem George... Como se fosse possível passar por cima desta senhora deliciosamente perversa.
Estamos perante o tipo de drama histórico que cede à tentação moderna e revitalizadora da comédia negra, com detalhes picantes, anacrónicos e alguns floreios bem-vindos, mas porventura pouco empenhado em levar até ao fim esse vigor manifesto nos primeiros episódios.
Vejamos, aquilo que começa por se apresentar orgulhosamente como uma farsa despachada, que assume as cores da amoralidade e exibe nádegas em abundância, acaba por perder convicção ao longo do percurso. Não no sentido de a série se tornar desinteressante, mas na medida em que o tom de loucura ensaiado no ponto de origem se dilui numa sucessão de cenas mais ajuizadas e monótonas, como que a fugir à analogia inevitável com A Favorita (2018), deYorgos Lanthimos – o filme em que a frágil rainha Anne, de Olivia Colman, a governar sob orientação da amante Sarah Churchill, duquesa de Marlborough (Rachel Weisz), se vê seduzida pela jovem Abigail (Emma Stone), recém-chegada ao palácio. Quão parecido é este triângulo amoroso com o do monarca James Stuart, o conde de Somerset e George Villiers? Muito parecido. Daí que o arrefecimento gradual da proposta estilística da série de D.C. Moore dê a entender que se procurou uma certa distância da obra iconoclasta de Lanthimos.
Outras séries da família de Mary & George
Nos últimos anos, o género do drama de época, seja na televisão ou no streaming, adquiriu modelos de ficção cada vez mais “atrevidos” e desobedientes em relação à especificidade da era representada. Há como que uma vontade geral de apimentar ou refrescar a abordagem histórica, independentemente da maior ou menor fidelidade aos factos.
A série Becoming Elizabeth (disponível no TVCine+ e ainda em exibição no TVCine Emotion) é disso um bom exemplo recente, por sinal, próximo da ideia de Mary & George, narrando o capítulo esquecido da educação sentimental e sexual daquela que se tornaria Isabel I de Inglaterra. Um olhar quase inédito sobre os anos formativos de uma jovem Isabel Tudor, marcados pela presença festiva e sedutora de um tal Sir Thomas Seymour.
O mesmo tipo de leve expressão moderna que molda The Serpent Queen, também estreada nos canais TVCine, um retrato revisionista de Catarina de Médici, a revelar o animal diplomático, cuja presença intimidante os livros de História resumiram em termos maquiavélicos – no caso, Samantha Morton confere à monarca uma secreta vibração metaleira...
Nada que alcance a irreverência, porém, de títulos do streaming como Bridgerton e The Great. A primeira, um dos gigantescos sucessos da Netflix, centrada nas movimentações escaldantes da alta sociedade londrina do século XIX; a segunda, disponível no catálogo da HBO Max, um absoluto delírio palaciano em terras russas, com Elle Fanning a divertir-se à grande no papel da maior das czarinas, pela pena do argumentista Tony McNamara, uma das mentes mais malcomportadas do panorama (que inclusive coassinou o argumento de A Favorita).
Entenda-se: Mary & George não chega nem perto deste último registo absurdo, mas o espírito indisciplinado está lá.
“Se eu fosse um homem e tivesse a tua aparência, governaria a porra do planeta.” Assim começa a série com Julianne Moore em grande forma.