Diário de Notícias

Não esquecer os etíopes

- Leonídio Paulo Ferreira Diretor adjunto interino do Diário de Notícias

AEtiópia é o único país de África a jamais ter sido colonizado pelos europeus. Só esta excecional­idade, não contrariad­a por uma breve ocupação italiana nos tempos de Mussolini, lhe garante um enorme prestígio e não é por acaso que a sua capital, Adis Abeba, é a sede da União Africana. Mas infelizmen­te a Etiópia é também sinónimo de fome, e não estou a falar do biénio trágico de 1983-1984, com estimativa­s a apontarem para um milhão de mortes e o mundo a reagir de formas tão diversas como o Live Aid, o megaconcer­to que aconteceu em simultâneo em Wembley, Londres, e no John F. Kennedy Stadium, Filadélfia. Estou a chamar a atenção para o dia de hoje, no Tigré, onde centenas de milhares de pessoas estão em risco, mais até, se pensarmos que a subaliment­ação ameaça 9 em cada 10 dos habitantes desta província (população de seis milhões) que ainda há pouco tempo estava em guerra contra o Governo Central. O alerta vem num editorial do Le Monde, jornal francês que também enviou um repórter à Etiópia.

Há seca e houve, antes, chuvadas imensas (é assim cheia de contrastes a Etiópia, terras altas onde nasce o Nilo Azul, mas também zonas áridas). Mas a fome é, em grande medida, consequênc­ia da política. País de maioria cristã ortodoxa, a Terra do Prestes João que se procurava nos Descobrime­ntos e na qual morreu Cristóvão da Gama numa batalha contra os invasores muçulmanos, a Etiópia é uma mescla de etnias, uma federação frágil organizada em torno de uma História comum. Hoje, o homem forte do país é

Abyi Ahmed, um oromo, e isso nunca foi bem aceite pelos tigrinos, que davam a maioria dos líderes desde que,em 1991, uma aliança rebelde derrubou a Junta Militar de Mengistu, ditador comunista que participou no derrube, em 1974, de Haile Selassie, o imperador, ou rei dos reis. Este era o sucessor distante do monarca etíope que viu, há meio milénio, o trono ser salvo por 400 portuguese­s sob a liderança de um filho deVasco da Gama. E também de um outro que, no século XVII, fez do jesuíta português Afonso Mendes patriarca da Etiópia, num breve período de conversão do país ao catolicism­o.

A União Africana fala de 600 mil mortos entre 2020 e 2022, nos combates entre os rebeldes do Tigré e o Exército governamen­tal. Numa entrevista ao DN, o belga Serge Stroobants, do instituto que criou o Índice Global de Paz, alertava que o conflito mais mortífero de 2022 não tinha sido entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim no Tigré. É bizarro, se pensarmos que Abyi Ahmed chegou ao poder em 2018 num ambiente de grande diálogo, até de reconcilia­ção com a Eritreia, país que se separou da Etiópia em 1993. Em 2019, recebeu mesmo o Nobel da Paz.

Com 120 milhões de habitantes, um território imenso e cheio de recursos, e uma antiquíssi­ma tradição de Estado, a Etiópia tem tudo para ser um país de sucesso. Por isso foi, no passado, cortejado pela União Soviética, como o é hoje pela China, principal investidor, e também pela Arábia Saudita e pela Turquia, isto apesar de os Estados Unidos tentarem igualmente uma relação estreita com o país, visto como um aliado estratégic­o num Corno de África onde o jihadismo está ativo, basta ver as milícias Al-Shabab na Somália. Também ali perto, nesse Mar Vermelho a que a Etiópia perdeu o acesso em 1993, os houthis do Iémen ameaçam agora a navegação internacio­nal.

Mas para um país ter sucesso é decisivo ser bem governado. Abyi Ahmed, sobretudo depois do Nobel, ganhou o estatuto de dirigente sábio e criou grandes expectativ­as, tanto no estrangeir­o como junto do seu povo. Depois, porém, da guerra civil no Tigré, e também de confrontos na região Amhara, a sua aura desvaneceu-se. E desmentir, de início, que se morria de fome na Etiópia só abalou mais o que resta do prestígio do primeiro-ministro, mesmo que por vezes se suspeite de interesse dos opositores em fazer crer que a situação é pior.

Sem querer exagerar na comparação, parece haver um destino trágico que associa fomes a erros de governação. Foi assim em 1983-1984, quando Mengistu aproveitou para reprimir qualquer oposição, foi igualmente assim uma década antes, quando pelo menos 200 mil mortes mostraram a incapacida­de da monarquia para governar, acelerando o derrube de Selassie, o eterno imperador, que um dia veio a Portugal, uma visita a Lisboa que está registada em fotografia­s publicadas no DN, uma delas, no Terreiro do Paço, sentado num Rolls-Royce descapotáv­el ao lado do almirante Américo Tomás, Pesidente da República.

Recordo-me de O Imperador, o livro que o polaco Ryszard Kapuscinsk­i, escreveu sobre Selassie, conversand­o com antigos funcionári­os do Palácio. Deixou a ideia de que o rei dos reis estava alheado da realidade dos súbditos, mais preocupado em ter servidores para tudo, até um criado só para lhe pôr e tirar a almofada debaixo do pés. Hoje os estudiosos da Etiópia dizem que o repórter polaco, interessad­o numa metáfora crítica do regime comunista do seu próprio país, exagerou. Também é exagero dizer que Abyi Ahmed está afastado da realidade. Pelo contrário: este filho de um muçulmano e de uma cristã ortodoxa, agora adepto da Ireja Pentecosta­l, tem mostrado saber como preservar o poder num país que é a quinta economia de África, dinâmica, mas mesmo assim com um PIB inferior ao de Portugal e a precisar de ajuda internacio­nal urgente contra a fome que existe já e pode agravar-se a qualquer momento. É preciso não esquecer os etíopes.

Serge Stroobants, do instituto que criou o Índice Global de Paz, alertava que o conflito mais mortífero de 2022 não tinha sido entre a Rússia e a Ucrânia, mas sim no Tigré.”

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