Rui Gonçalves nasceu em Lisboa em 1953. Licenciado em Direito e História, foi jurista do banco Montepio Geral.
Em março de 1974 chegava à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, calças de veludo liso à boca de sino e perfume Aramis. Pensava muitas vezes na sorte que tive em ficar livre da tropa. A Guerra do Ultramar atormentava os jovens da minha geração e as suas famílias. Mas, sentia também um ténue desgosto por ter sido dispensado. Vivia num país em que ir à tropa para servir Portugal fazia parte da educação de um homem.
As aulas do professor Soares Martínez eram intragáveis. A ironia que dedicava aos alunos roçava a humilhação. Ninguém levantava cabelo, não se podia falar. No meu caso, em que a cedência ao preconceito arreigado de que um homem não fazia um curso de meninas, e o receio do bullying que então se fazia aos “efeminados” que seguiam os Cursos de Letras, levaram a que trocasse escolher Direito por História, no meu caso, dizia, queria mesmo era que o senhor se calasse para ir com colegas e amigos ao Galeto, tomar uns copos e combinar as noitadas no Ad Lib ou Stone’s.
Sou filho de comerciantes – os meus pais tinham duas sapatarias, uma nas Avenidas Novas e outra em Campo de Ourique. Filho único, a minha vida ia seguindo sem sobressaltos. A mesada permitia pequenos luxos – idas ao cinema, jantares fora, de vez em quando, compras, viagens de férias, passeatas aos sábados no Fiat 128 paterno. A consciência política era zero. Via com algum espanto e incredulidade a perseguição dos gorilas a colegas meus, na faculdade, e perguntava-me qual a razão de tanta perseguição.
Enquanto ouvia David Bowie, Elton John, Simon & Garfunkel, sonhava viver fora deste país. Tão simplesmente por questões de liberdade pessoal e estética. A minha namorada de há 5 anos acompanhava-me, mas não tinha a mesma ambição e isso desgostava-me.
Era muito bonita, meiga. Vinha dos tempos do liceu. O Liceu Pedro Nunes, que me deu a melhor formação cultural – e não só – que na altura se podia exigir. Os meus colegas e amigos vinham de famílias da alta burguesia lisboeta, da aristocracia e da classe política do momento. Convivi com alguns dos que vieram a ser altos quadros políticos do pós-25 de Abril.
Desejava poder ver O último Tango em Paris e Laranja Mecânica sem cortes, como tinha visto no verão de 1973, em Paris e em Londres, respetivamente, em cinemas em que se podia fumar.
Não tendo consciência política, sentia que tinha de obedecer a um determinado padrão. Quem se afastasse da “normalidade” era colocado à parte. Por isso, escondia de mim, recusando-me a aceitar, sequer a perceber, aquela que mais tarde assumi ser a minha orientação sexual. Na minha cabeça, na dos meus pais, na dos meus amigos, eu estava talhado para me casar e ter filhos com uma mulher.
A liberdade aconteceu a 25 de Abril. Acabaram-se as aulas do professor Martínez. Seria saneado, não sem antes lhe virarem o Citroën vermelho, boca de sapo, de rodas para o ar. E no verão de 1974, em Londres, começou o meu futuro de libertação.
“A liberdade aconteceu a 25 de Abril. Acabaram-se as aulas do professor Martínez. Seria saneado, não sem antes lhe virarem o Citroën vermelho, boca de sapo, de rodas para o ar. E no verão de 1974, em Londres, começou o meu futuro de libertação.”