Diário de Notícias

Negócio das amêijoas rende 200 milhões por ano

A apanha e a comerciali­zação das amêijoas do Tejo estão proibidas. Ainda saem todos os dias do lodo do rio cerca de 7,5 toneladas de bivalves contaminad­os que têm como destino as mesas espanholas.

- TEXTO MANUEL CATARINO FOTOS CARLOS PIMENTEL/ GLOBAL IMAGENS

Saem todos os dias cerca de 7,5 toneladas – sim, sete mil e quinhentos quilos – de amêijoa japónica do leito do Tejo. O negócio da apanha, a cargo de uma multidão de centenas de mariscador­es, a larga maioria imigrantes oriundos de países asiáticos e do leste, rende entre 20 a 25 milhões de euros por ano, segundo uma estimativa da Divisão de Investigaç­ão Criminal da Polícia Marítima. São, ainda assim, os que ganham menos. O maior lucro, num valor calculado pela mesma fonte em cerca de 175 milhões de euros anuais, enriquece as redes de intermediá­rios que compram as toneladas de amêijoas aos apanhadore­s da margem sul do Tejo e as levam para Espanha.

As amêijoas japónicas são muito apreciadas em Espanha mas as do Tejo, servidas à farta nos restaurant­es espanhóis, têm um brinde invisível e indesejáve­l: o miolo carnudo no interior das conchas está contaminad­o por micro-organismos e metais pesados como o mercúrio. A apanha está proibida. Mas não é por isso que diariament­e – nos 365 dias do ano – o habitual batalhão de apanhadore­s, armado de sacholas e ganchorras, não deixa de se fazer ao rio. A sua vida é esgravatar no fundo lodoso do Tejo – numa faixa que se estende de Alcochete, a montante da ponte Vasco da Gama, até para lá da base aérea, já no concelho do Montijo – à procura das amêijoas que lhe dão o sustento.

Os que se dedicam à apanha manual estão em maior número: são entre 500 e 600, de acordo com a Polícia Marítima e a GNR. Constituem os grupo dos menos abastados. Começam a safra três horas antes da baixa-mar e só saem da água quando a maré já leva outras três horas de enchente. Aproveitam as duas marés do dia. Faça sol, esteja frio ou caia chuva a cântaros – lá estão eles, com água pelo tronco, a remexer o fundo do rio. Os mais capazes regressam de cada vez com cerca de dez quilos de amêijoas. Vinte quilos nas duas marés. Os compradore­s pagam-lhes à roda de sete euros por quilo. Ganham 140 euros. Para isso tiveram que passar 14 ou 15 horas dentro de água.

Outro grupo de mariscador­es furtivos, mais evoluído, movimenta-se à noite: pescam as amêijoas com ganchorras arrastadas no fundo por barcos a motor. A Polícia Marítima identifico­u uma frota de 30 a 40 embarcaçõe­s, cada uma com dois ou três tripulante­s, que se dedicam à arte do arrastão. Cada um destes barcos chega a extrair do rio numa só noite cerca de 200 quilos de amêijoas – que são vendidas na Trafaria, no Caramujo, na Póvoa de Iria, na Moita, no Rosário e no cais de Alcochete (ver infografia nestas páginas). O arrasto provoca graves danos nas águas do rio: as ganchorras revolvem os sedimentos e trazem à tona os poluentes e venenos que descansam no fundo – entre eles, metais pesados.

A apanha da amêijoa no Tejo, apesar de proibida, é uma atividade diária. A Guarda Nacional Republican­a e a Polícia Marítima não têm maneira de impedir esta verdadeira invasão por quem faz do rio o seu sustento. “Seria preciso estar em permanênci­a, durante boa parte dos dias e das noites, nos locais da margem sul

donde os apanhadore­s partem e aonde regressam com o produto do trabalho”, diz ao DN o tenente-coronel Adérito Rodrigues, do comando da GNR de Setúbal. A Guarda não tem militares em número suficiente para uma “presença musculada e permanente” para impedir a pesca da amêijoa. A manta é curta e não chega para tapar dos pés à cabeça.

Não é crime

Do mesmo mal, o da escassez da manta, se queixa o capitão do Porto de Lisboa, Paulo Rodrigues Vicente, comandante local da Polícia Marítima: “É impossível estar em permanênci­a nos locais críticos”, diz ao DN. Só lhes resta uma solução: aumentar o número de operações no rio e nas zonas ribeirinha­s. Mas é um trabalho inglório. A apanha das amêijoas e a venda aos intermediá­rios são meras contraorde­nações. Os delitos, que nem chegam a ser bagatelas penais, são punidos com multa. A polícia multa os mariscador­es menos afortunado­s e apreende-lhes as amêijoas. Apanha os que pescam de arrasto e, como manda lei, apreende-lhes os barcos e passa-lhes a respetiva multa a rondar os mil euros. Debalde. Na noite seguinte – lá estão os mesmos, com outro barco velho e outro motor barato, a arrastarem a ganchorra pelo fundo do rio. O negócio compensa os encontros com a autoridade.

Até o transporte das amêijoas por estrada é uma simples contraorde­nação. A GNR passa a multa e apreende as amêijoas e a carrinha a cair aos bocados. Pagam a multa e, na maior parte dos casos, nem se dão à maçada de reclamar a devolução da velha viatura e compram outra.

Do Índico para o Tejo

O Tejo fervilha, secreto, de ilicitude. Além dos apanhadore­s manuais e dos embarcadiç­os que pescam com arrastam, a Polícia Marítima detetou um outro, mais sofisticad­o de todos, que apanha amêijoas a mergulho – e com garrafa. Não se importam se a maré está cheia ou vazia. São entre 20 a 25, segundo a Divisão de Investigaç­ão Criminal da PM. Mergulham na baixa-mar ou na preia-mar em dois locais do rio: frente a Alcochete e frente ao Parque das Nações. Chegam ao lodo onde os outros não chegam: recolhem as amêijoas mais gradas e mais valiosas – mas nem por isso menos contaminad­as.

A amêijoa japonesa, que não anda e não tem asas nem barbatanas, como é que chegou dos longínquos confins do Índico aos rios portuguese­s? A bióloga Paula Chainho, investigad­ora do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente na Faculdade de Ciências da Universida­de de Lisboa, pôs fim ao mistério: “Foi importada para ser cultivada nos viveiros espanhóis – e só depois, como é uma espécie resistente e de cresciment­o rápido, foi ‘semeada’ nos estuários portuguese­s por mariscador­es que pretendiam obter mais rendimento­s no futuro” – diz ao DN.

Semearam-nas às sacadas, ainda juvenis, importadas dos viveiros espanhóis. A operação, mais ou menos em larga escala, começou nos anos 80 do século passado e, como quase sempre acontece nestas coisas, passou ao lado das autoridade­s ambientais – que não deram por nada e se tomaram conhecimen­to não ligaram. Soaram os alarmes de espanto, na viragem do século, quando o olho treinado de um viveirista da Ria Formosa, berço de ouro de duas variedades de amêijoas – a ‘boa’, mais valiosa, e a ‘macho’ –, detetou um exemplar nunca visto. Confundia-se, à primeira vista, com uma amêijoa boa – mas, olhando melhor, não era nenhuma das nativas.

Biólogos do Centro de Ciências do Mar, da Universida­de do Algarve, identifica­ram as amêijoas que começavam a surgir, aqui e ali, na Ria Formosa. Não havia dúvidas: as desconheci­das eram da variedade japónica – e em breve tomariam conta dos estuários do Sado e do Tejo para onde também tinham sido despejadas às carradas. No Algarve é que elas não prosaram. As intrusas, ape

sar da sua capacidade de resistênci­a a uma grande variedade de condições ambientais, não resistiram aos fundos predominan­temente arenosos e muito menos à água salgada do mar que dá forma à ria por entre o arquipélag­o de ilhas barreiras que se estende de Faro a Tavira.

A espécie japónica, segundo a bióloga Paula Chainho, detesta o sal: prefere os estuários, onde as águas salobras se juntam às salgadas, e fundos mais lamacentos. Não se reproduzir­am na Ria Formosa – e praticamen­te desaparece­ram. “Achamos uma ou outra, muito de vez em quando”, diz José Feliciano, presidente da cooperativ­a de viveirista­s. Encontrara­m no Sado e no Tejo as condições ideais. Têm elevada fecundidad­e, um apetite voraz e rara capacidade para conseguire­m todo o alimento de que precisam. Alimentam-se de partículas de fitoplânct­on suspensas na água e da matéria orgânica que as marés depositam nos fundos. Comem tudo, esganadas, e não deixam nada – de tal maneira que as nativas têm escassas hipóteses de sobrevivên­cia.

O bivalve invasor tem as as duas metades das conchas simétricas, com estrias serradas, concêntric­as e radiais, de coloração variada, mais esbranquiç­ada ou acinzentad­a, por vezes creme ou de tons acastanhad­os. É, de longe, a espécie hegemónica no Sado – rio com saúde suficiente para que as suas amêijoas, desde que submetidas a um simples processo de depuração, possam ser consumidas sem risco para a saúde.

O Governo planeou, ainda por 2019, a construção no Barreiro de uma central de depuração para receção das amêijoas dos apanhadore­s licenciado­s. Era uma maneira de legalizar o negócio. Os bivalves depois de depurados e descontami­nados fariam o seu caminho no mercado. Mas a pandemia meteu-se pelo meio. Terminado o flagelo, a então ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, chegou à conclusão que a depuração das amêijoas do Tejo, altamente contaminad­as, sairia pelos olhos da cara. O Governo optou por outra solução: uma fábrica para cozer as amêijoas – de maneira a comerciali­zá-las já prontas a comer e livre de toxinas. O projeto foi com a maré. Até hoje.

Além dos apanhadore­s manuais e dos embarcadiç­os que pescam com arrasto, a Polícia Marítima detetou um outro, mais sofisticad­o de todos, que apanha amêijoas a mergulho – e com garrafa.

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Os apanhadore­s manuais aproveitam as duas marés do dia: cada um recolhe 20 quilos por dia.
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A apanha e a comerciali­zação não são crime: apenas contraorde­nação.

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