Negócio das amêijoas rende 200 milhões por ano
A apanha e a comercialização das amêijoas do Tejo estão proibidas. Ainda saem todos os dias do lodo do rio cerca de 7,5 toneladas de bivalves contaminados que têm como destino as mesas espanholas.
Saem todos os dias cerca de 7,5 toneladas – sim, sete mil e quinhentos quilos – de amêijoa japónica do leito do Tejo. O negócio da apanha, a cargo de uma multidão de centenas de mariscadores, a larga maioria imigrantes oriundos de países asiáticos e do leste, rende entre 20 a 25 milhões de euros por ano, segundo uma estimativa da Divisão de Investigação Criminal da Polícia Marítima. São, ainda assim, os que ganham menos. O maior lucro, num valor calculado pela mesma fonte em cerca de 175 milhões de euros anuais, enriquece as redes de intermediários que compram as toneladas de amêijoas aos apanhadores da margem sul do Tejo e as levam para Espanha.
As amêijoas japónicas são muito apreciadas em Espanha mas as do Tejo, servidas à farta nos restaurantes espanhóis, têm um brinde invisível e indesejável: o miolo carnudo no interior das conchas está contaminado por micro-organismos e metais pesados como o mercúrio. A apanha está proibida. Mas não é por isso que diariamente – nos 365 dias do ano – o habitual batalhão de apanhadores, armado de sacholas e ganchorras, não deixa de se fazer ao rio. A sua vida é esgravatar no fundo lodoso do Tejo – numa faixa que se estende de Alcochete, a montante da ponte Vasco da Gama, até para lá da base aérea, já no concelho do Montijo – à procura das amêijoas que lhe dão o sustento.
Os que se dedicam à apanha manual estão em maior número: são entre 500 e 600, de acordo com a Polícia Marítima e a GNR. Constituem os grupo dos menos abastados. Começam a safra três horas antes da baixa-mar e só saem da água quando a maré já leva outras três horas de enchente. Aproveitam as duas marés do dia. Faça sol, esteja frio ou caia chuva a cântaros – lá estão eles, com água pelo tronco, a remexer o fundo do rio. Os mais capazes regressam de cada vez com cerca de dez quilos de amêijoas. Vinte quilos nas duas marés. Os compradores pagam-lhes à roda de sete euros por quilo. Ganham 140 euros. Para isso tiveram que passar 14 ou 15 horas dentro de água.
Outro grupo de mariscadores furtivos, mais evoluído, movimenta-se à noite: pescam as amêijoas com ganchorras arrastadas no fundo por barcos a motor. A Polícia Marítima identificou uma frota de 30 a 40 embarcações, cada uma com dois ou três tripulantes, que se dedicam à arte do arrastão. Cada um destes barcos chega a extrair do rio numa só noite cerca de 200 quilos de amêijoas – que são vendidas na Trafaria, no Caramujo, na Póvoa de Iria, na Moita, no Rosário e no cais de Alcochete (ver infografia nestas páginas). O arrasto provoca graves danos nas águas do rio: as ganchorras revolvem os sedimentos e trazem à tona os poluentes e venenos que descansam no fundo – entre eles, metais pesados.
A apanha da amêijoa no Tejo, apesar de proibida, é uma atividade diária. A Guarda Nacional Republicana e a Polícia Marítima não têm maneira de impedir esta verdadeira invasão por quem faz do rio o seu sustento. “Seria preciso estar em permanência, durante boa parte dos dias e das noites, nos locais da margem sul
donde os apanhadores partem e aonde regressam com o produto do trabalho”, diz ao DN o tenente-coronel Adérito Rodrigues, do comando da GNR de Setúbal. A Guarda não tem militares em número suficiente para uma “presença musculada e permanente” para impedir a pesca da amêijoa. A manta é curta e não chega para tapar dos pés à cabeça.
Não é crime
Do mesmo mal, o da escassez da manta, se queixa o capitão do Porto de Lisboa, Paulo Rodrigues Vicente, comandante local da Polícia Marítima: “É impossível estar em permanência nos locais críticos”, diz ao DN. Só lhes resta uma solução: aumentar o número de operações no rio e nas zonas ribeirinhas. Mas é um trabalho inglório. A apanha das amêijoas e a venda aos intermediários são meras contraordenações. Os delitos, que nem chegam a ser bagatelas penais, são punidos com multa. A polícia multa os mariscadores menos afortunados e apreende-lhes as amêijoas. Apanha os que pescam de arrasto e, como manda lei, apreende-lhes os barcos e passa-lhes a respetiva multa a rondar os mil euros. Debalde. Na noite seguinte – lá estão os mesmos, com outro barco velho e outro motor barato, a arrastarem a ganchorra pelo fundo do rio. O negócio compensa os encontros com a autoridade.
Até o transporte das amêijoas por estrada é uma simples contraordenação. A GNR passa a multa e apreende as amêijoas e a carrinha a cair aos bocados. Pagam a multa e, na maior parte dos casos, nem se dão à maçada de reclamar a devolução da velha viatura e compram outra.
Do Índico para o Tejo
O Tejo fervilha, secreto, de ilicitude. Além dos apanhadores manuais e dos embarcadiços que pescam com arrastam, a Polícia Marítima detetou um outro, mais sofisticado de todos, que apanha amêijoas a mergulho – e com garrafa. Não se importam se a maré está cheia ou vazia. São entre 20 a 25, segundo a Divisão de Investigação Criminal da PM. Mergulham na baixa-mar ou na preia-mar em dois locais do rio: frente a Alcochete e frente ao Parque das Nações. Chegam ao lodo onde os outros não chegam: recolhem as amêijoas mais gradas e mais valiosas – mas nem por isso menos contaminadas.
A amêijoa japonesa, que não anda e não tem asas nem barbatanas, como é que chegou dos longínquos confins do Índico aos rios portugueses? A bióloga Paula Chainho, investigadora do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pôs fim ao mistério: “Foi importada para ser cultivada nos viveiros espanhóis – e só depois, como é uma espécie resistente e de crescimento rápido, foi ‘semeada’ nos estuários portugueses por mariscadores que pretendiam obter mais rendimentos no futuro” – diz ao DN.
Semearam-nas às sacadas, ainda juvenis, importadas dos viveiros espanhóis. A operação, mais ou menos em larga escala, começou nos anos 80 do século passado e, como quase sempre acontece nestas coisas, passou ao lado das autoridades ambientais – que não deram por nada e se tomaram conhecimento não ligaram. Soaram os alarmes de espanto, na viragem do século, quando o olho treinado de um viveirista da Ria Formosa, berço de ouro de duas variedades de amêijoas – a ‘boa’, mais valiosa, e a ‘macho’ –, detetou um exemplar nunca visto. Confundia-se, à primeira vista, com uma amêijoa boa – mas, olhando melhor, não era nenhuma das nativas.
Biólogos do Centro de Ciências do Mar, da Universidade do Algarve, identificaram as amêijoas que começavam a surgir, aqui e ali, na Ria Formosa. Não havia dúvidas: as desconhecidas eram da variedade japónica – e em breve tomariam conta dos estuários do Sado e do Tejo para onde também tinham sido despejadas às carradas. No Algarve é que elas não prosaram. As intrusas, ape
sar da sua capacidade de resistência a uma grande variedade de condições ambientais, não resistiram aos fundos predominantemente arenosos e muito menos à água salgada do mar que dá forma à ria por entre o arquipélago de ilhas barreiras que se estende de Faro a Tavira.
A espécie japónica, segundo a bióloga Paula Chainho, detesta o sal: prefere os estuários, onde as águas salobras se juntam às salgadas, e fundos mais lamacentos. Não se reproduziram na Ria Formosa – e praticamente desapareceram. “Achamos uma ou outra, muito de vez em quando”, diz José Feliciano, presidente da cooperativa de viveiristas. Encontraram no Sado e no Tejo as condições ideais. Têm elevada fecundidade, um apetite voraz e rara capacidade para conseguirem todo o alimento de que precisam. Alimentam-se de partículas de fitoplâncton suspensas na água e da matéria orgânica que as marés depositam nos fundos. Comem tudo, esganadas, e não deixam nada – de tal maneira que as nativas têm escassas hipóteses de sobrevivência.
O bivalve invasor tem as as duas metades das conchas simétricas, com estrias serradas, concêntricas e radiais, de coloração variada, mais esbranquiçada ou acinzentada, por vezes creme ou de tons acastanhados. É, de longe, a espécie hegemónica no Sado – rio com saúde suficiente para que as suas amêijoas, desde que submetidas a um simples processo de depuração, possam ser consumidas sem risco para a saúde.
O Governo planeou, ainda por 2019, a construção no Barreiro de uma central de depuração para receção das amêijoas dos apanhadores licenciados. Era uma maneira de legalizar o negócio. Os bivalves depois de depurados e descontaminados fariam o seu caminho no mercado. Mas a pandemia meteu-se pelo meio. Terminado o flagelo, a então ministra do Mar, Ana Paula Vitorino, chegou à conclusão que a depuração das amêijoas do Tejo, altamente contaminadas, sairia pelos olhos da cara. O Governo optou por outra solução: uma fábrica para cozer as amêijoas – de maneira a comercializá-las já prontas a comer e livre de toxinas. O projeto foi com a maré. Até hoje.
Além dos apanhadores manuais e dos embarcadiços que pescam com arrasto, a Polícia Marítima detetou um outro, mais sofisticado de todos, que apanha amêijoas a mergulho – e com garrafa.