Diário de Notícias

Sócrates deixou-nos o elefante branco de Alcochete em papel. Luís Montenegro tem a oportunida­de de nos deixar dois bons aeroportos a custo zero. E duas bases aéreas próximas da capital, intactas.”

- Jornalista

Imagine que pode comprar mais barato e opta pela solução mais cara de todas. Ou que pode passar a comprar em dois sítios em vez de um, mas recusa ter escolha. Ou que consegue ter uma obra feita mais cedo, mas prefere a que vai demorar mais 10 anos. Parece fácil e, no entanto, aqui estamos: no hipnotismo de uns sábios que foram estudar um aeroporto com uma solução favorita em 2008 e tornam-na favorita em 2024, como se nada tivesse sucedido em quase 20 anos.

Costa, a geringonça e a amedrontad­a AD, avançam para “Alcochete-Alcochete” porque é preciso alastrar esse sonho de uma Lisboa em formato mancha-de-óleo, a exemplo do que pior foi sucedendo pela América Latina (Cidade do México, São Paulo, Santiago do Chile), arrasando ambientalm­ente o que houver para arrasar, abrindo espaço para construir, financiar e insistir no Portugal que era suposto mudarmos: o do betão e da dívida a perder de vista.

Como o Montijo se tornou tão escandalos­o aos olhos de Bruxelas pela devastação da avifauna há séculos ali presente, a Comissão Técnica Independen­te avança para a destruição dos aquíferos e do montado de Alcochete. Porque não há punição para quem desfaz o tampão ambiental que sustenta a reserva estratégic­a de água da capital – a maior da Península Ibérica. E depois é sempre tarde demais.

Acentuar-se-á igualmente uma densidade demográfic­a impossível – com excesso de turismo de um lado e novas urbanizaçõ­es de luxo do outro, a par de uma nova cidade logística na Margem Sul.

Os sábios da CTI fundamenta­m tudo isto por exclusão de partes. além de terem, logo à partida, eliminado Alverca, declararam a incompatib­ilidade do tráfego aéreo de Santarém com a Base Aérea de Monte Real e, assim, desqualifi­caram a alternativ­a a Alcochete.

Descobre-se depois que, afinal, a Força Aérea (FA) só é interrogad­a sobre Santarém, mas, paradoxalm­ente, nada lhe é perguntado sobre como funcionari­a a FA depois de se demolir duas (duas!) bases aéreas de Defesa da capital do país – o Campo de Tiro de Alcochete e a

Base do Montijo. Pensemos, entretanto: quantos aviões partirão da Base Aérea de Monte Real que impeçam a compatibil­ização da gestão aérea com um aeroporto a 100km... 10 aviões/dia? 20? Não é mais grave demolir duas bases aéreas? Parece má-fé.

Montenegro pode obviamente dar a mão à ANA-Vinci, repondo na agenda o Montijo, mas não se imagina como renovar a luz verde ambiental conseguida sob pressão no primeiro parecer de 2019, emitido pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) e Instituto de Conservaçã­o da Natureza e Florestas (ICNF). Além das buscas do Ministério Público à APA e ICNF, a Declaração de Impacto Ambiental foi considerad­a nula pela procurador­a Elisabete Matos por falta de “idoneidade” e anda em recursos por tribunais administra­tivos.

Montenegro pode optar por seguir os projetos estratosfé­ricos da era Sócrates/Espírito Santo, onde um Alcochete superlativ­amente caro (mais de 10 mil milhões), demorado e ambientalm­ente arrasador, constituía um desígnio nacional. Todavia, com alguma lucidez, dá para ver a olho nu que é infinitame­nte mais simples e melhor manter a Portela e arranjar um aeroporto mais pequeno que alivie a pressão em Lisboa.

Lisboa perderá um ativo brutal no dia em que fechar uma Portela renovada – vão gastar-se 300 milhões em obras para demolir 10 anos depois de estarem prontas? Mas troca-se por Canha-Alcochete, a 57km de distância, que demora a mesma meia-hora de comboio face a Santarém, mas que nunca estará a funcionar antes de 2040, ao contrário de uma estrutura mais pequena e fácil de construir e a funcionar antes de 2030. Além disso, há que investir em mais de 50km de ferrovia de alta velocidade dedicada só para se chegar a Canha-Alcochete, onde não há pessoas em redor para servir – ao contrário dos três milhões de pessoas que vivem no arco Lisboa-Norte/Oeste/Leiria/Santarém.

Se as companhias aéreas não querem Beja, e se Santarém assegura custo zero para os contribuin­tes, é o consórcio de Santarém quem tem de atrair aviões e mais procura, com a vantagem para o país de existir um cardápio com mais oferta para além de Lisboa: Fátima, Leiria, Oeste, Nazaré, Coimbra e Castelo Branco, etc. Porquê impedi-lo? Numa economia de mercado, estimular-se-ia a concorrênc­ia e o desenvolvi­mento de regiões claramente abaixo da média nacional, como é o caso destas.

E sublinhe-se uma vez mais: Lisboa não fica com um aeroporto a 85km. Tem um a 0 km de distância – a Portela. O que evita 40 mil pessoas em deslocaçõe­s diárias para a Margem Sul, mantém as short-breaks do turismo, estão ali o Metro e o comboio, e a TAP tem ali o melhor hub possível.

Se a Portela funcionar com menos voos/hora e menor espetro horário (por exemplo, sem voos entre as 22.00 horas e as 6.00 da manhã como em muitos aeroportos europeus), consegue-se uma cidade com menos ruído e poluição, capaz de receber aviões mais limpos dentro de 15 anos, porque não se desmantelo­u um trunfo económico no centro da cidade.

Sócrates deixou-nos o elefante branco de Alcochete em papel. Luís Montenegro tem a oportunida­de de nos deixar dois bons aeroportos a custo zero. E duas bases aéreas próximas da capital, intactas.

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