Joe Biden faz cada vez mais a diferença entre um apoio inequívoco à segurança de Israel e uma claríssima censura aos procedimentos do Governo israelita na forma como tem conduzido a operação militar.”
O7 de Outubro de 2023 foi para os israelitas o que o 11 de Setembro de 2001 foi para os norte-americanos: um misto de trauma incomportável com a descoberta de que, afinal, o seu território poderia ser violentamente invadido pelo inimigo.
Não era aceitável que a Administração americana, fosse ela democrata ou republicana, não tivesse uma posição claríssima do lado de Israel depois do massacre do Hamas em solo israelita.
Joe Biden, naqueles dias de choque e horror que se seguiram ao 7 de Outubro, esteve do lado certo e fez o que tinha de ser feito: lembrou o que os americanos sentiram após o 11 de Setembro, prestou todo o apoio ao Governo de Netanyahu, sinalizou ao Hamas: “Não vão voltar a cometer um crime horrendo destes.” E até avisou Teerão, quanto a um possível (na altura nada inverosímil, hoje menos provável) alastramento do conflito na região: “Não se atrevam!”
Passaram mais de cinco meses, mais de 31 mil mortos em Gaza depois (grande parte deles mulheres e crianças), o risco para Israel continua, mas a narrativa de Telavive está cada vez mais difícil de defender.
Obsessão militar, défice político
O Governo de Netanyahu está entre a espada e a parede – dentro e fora de Israel.
Telavive focou-se tanto na via militar que perdeu, quase por completo, a mensagem política. Sondagem do Índice de Democracia de Israel mostra que 86% dos inquiridos confiam nas Forças de Defesa de Israel, o maior valor de sempre. Mas apenas 23% dos inquiridos confiam no Governo e ainda menos (19%) no Knesset (o Parlamento israelita).
Netanyahu repete à exaustão que a operação em Rafah é a necessária para a vitória contra o Hamas. Israel sustenta que restam nessa zona sul da Faixa de Gaza – colada à fronteira da península do Sinai, no Egito – quatro batalhões do grupo terrorista que perpetrou 7 de Outubro.
Nem a pressão da Administração Biden no sentido de que Israel só avance para a operação terreste em Rafah quando tiver um plano concreto para defender os civis parece travar essa convicção de Netanyahu.
Este desequilíbrio entre o foco militar e a perda de mensagem política leva a um problema que também tem consequências militares. Numa crítica rara ao Governo, o comandante do 98.º batalhão das Forças de Defesa de Israel, Dan Goldfus, apelou aos governantes que “não fujam das responsabilidades” relativamente à gestão política do conflito. Goldfus pediu também que os responsáveis do Governo de Telavive não tomem atitudes “extremistas” que façam Israel regressar a um cenário pré-7 de Outubro. Goldfus foi convocado para ter uma “conversa clarificadora” com o seu chefe, o general Herzi Halevi.
O tempo passa e os reféns continuam à espera
A situação interna em Israel pode ser caracterizada, desde 7 de Outubro, numa mistura explosiva de dor, raiva, ansiedade e medo. As famílias dos reféns não desistem de manter na linha da frente da agenda política e mediática a necessidade de pôr a libertação dos seus próximos como a prioridade das prioridades – e isso está longe de ser verdade.
O tempo passa e os reféns continuam à espera de voltar à Liberdade. Falta saber quantos ainda estão vivos – e com que condições de saúde. As famílias não baixam os braços: na passada quinta-feira bloquearam a Autoestrada Ayalon, uma das principais de Telavive.
O problema interno existe desde 7 de Outubro e tem-se agravado nos últimos dois meses. Por meados de janeiro, o Shin Bet, uma das organizações dos serviços secretos de Israel, juntou-se ao ministro da Defesa, Yoav Galant, e aconselhou o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu a evitar o aumento dos conflitos na Cisjordânia – para que um novo foco de contestação não se acrescente àquele que já existe na Faixa de Gaza. Aquele serviço de segurança pediu a Netanyahu que reverta as decisões do gabinete tomadas após 7 de Outubro de reter centenas de milhares em receitas fiscais que Israel arrecada em nome da Autoridade Palestiniana e pare de impedir o regresso de cerca de 150 mil palestinianos que vivem na Cisjordânia, mas trabalham em Israel.
Mais recentemente, os Estados Unidos emitiram sanções contra três colonos israelitas e dois postos avançados de colonos na Cisjordânia.
Os EUA demarcam-se de Netanyahu
Joe Biden – que foi a Israel nos dias seguintes ao horror do atentado do Hamas e pediu a Netanyahu para não repetir os erros dos EUA pós 11 de Setembro – faz cada vez mais a diferença entre um apoio inequívoco à segurança de Israel e uma claríssima censura aos procedimentos do Governo israelita na forma como tem conduzido a operação militar.
A receção na Casa Branca (por Kamala Harris) e no Departamento de Estado (por Antony Blinken) a Benny Gantz – membro do Gabinete de Guerra, mas principal adversário de Netanyahu na política interna israelita – foi a prova final de que a Administração Biden está preparada para deixar cair qualquer apoio político a Netanyahu, sem que disso dependa a continuação de uma política pró-Israel.
Chuck Schumer, líder da maioria no Senado e o mais alto funcionário judeu eleito na História dos Estados Unidos, apelou à realização de novas eleições em Israel. “Como apoiante de Israel durante toda a vida, tornou-se claro para mim: a coligação de Netanyahu já não corresponde às necessidades de Israel depois de 7 de Outubro.” Schumer alegou: “Netanyahu mostrou extraordinária bravura enquanto jovem no campo de batalha e a sua maior prioridade é a segurança de Israel. No entanto, também acredito que o primeiro-ministro Netanyahu perdeu o rumo ao permitir que a sua sobrevivência política tenha precedência sobre os melhores interesses de Israel.”
Por tudo isso, o líder da maioria democrata no Senado conclui: “Acredito que uma nova eleição é a única forma de permitir um processo de decisão saudável e aberto sobre o futuro de Israel, numa altura em que tantos israelitas perderam a confiança na visão e na direção do seu Governo.”
A quadratura de círculo que Biden terá de fazer
A questão Israel/Hamas é um tema de política interna nos Estados Unidos. Joe Biden sabe disso e está a fazer tudo para estancar o problema sério que pode ter com a sua ala esquerda, com os jovens e com os árabes-americanos.
Esses três segmentos (minoritários no todo nacional, mas fundamentais para uma coligação democrata capaz de montar uma maioria presidencial na América) têm dado sinais de desconfiança quanto à posição pró-Israel da Administração Biden desde 7 de Outubro passado.
Para recuperá-los, Biden deverá ficar, nos próximos meses ainda mais exigente com os procedimentos do Governo de Netanyahu em Gaza e tem todo o interesse em promover uma solução diplomática que construa, de uma vez por todas, um período de paz na região.
É neste contexto que devemos compreender a recente nomeação de Mohammed Mustapha, o novo primeiro-ministro da Autoridade Palestiniana. De perfil tecnocrático, menos político e ideológico que o antecessor, Mustapha formou-se nos Estados Unidos. A sua escolha por parte do Presidente Abbas parece indicar trabalho diplomático de bastidores por parte de Washington, nomeadamente os últimos dois périplos do Secretário de Estado Blinken, entre os cinco que já fez no Médio Oriente nos últimos cinco meses.
Os EUA têm liderado o caso (no qual são acompanhados por Reino Unido, União Europeia e alguns países árabes da região) de que deverá ser a Autoridade Palestiniana a governar Gaza depois da operação militar israelita no enclave. Uma ideia que Netanyahu insiste em rejeitar, embora se refira a um “governo tecnocrático e não-político interpalestiniano”, sem Hamas ou Fatah.
O cunho tecnocrático de Mustapha poderá indicar um primeiro aceno para futuras pontes mediadas por EUA, Reino Unido e UE sobre o que pode vir a ser um futuro de Gaza sem a ocupação de Israel.