Diário de Notícias

Em entrevista recente, Isabel diz-se “particular­mente orgulhosa” por ter ajudado a “construir uma ponte entre a ex-colónia e a antiga potência colonial, uma ponte de interesses comuns onde o relacionam­ento de trabalho era mais equilibrad­o e justo.”

- Historiado­r. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Com o abandono da Presidênci­a, José Eduardo – que a filha diz ter sido “muito honesto”, jamais motivado pelas riquezas, antes pela ideologia e pela libertação do povo (a ponto de, até 2004, ter vivido numa casa modesta de três quartos, tendo sido levado “à força” para o Palácio Presidenci­al, onde não se “sentia confortáve­l” no meio de tanto luxo, preferindo andar com o mesmo fato de treino Adidas três dias por semana, garante a filha) –, José Eduardo, dizíamos, foi morar para uma mansão no Bairro de Miramar, forrada a mármores de Carrara, mas acabou por fixar-se em Barcelona, no luxuoso Bairro de Pedralbes, em opulenta casa que, curiosamen­te, antes pertencera a Jordi Pujol, que também terminou a vida política afundado em escândalos de corrupção e controvérs­ia (em 2014, por falta de financiame­ntos, fechou as portas o Centro de Estudos Jordi Pujol, destinado a divulgar a sua filosofia política e, pasme-se, o seu “pensamento ético”).

Morreu em 8 de Julho de 2022, aos 79 anos, mas as exéquias fúnebres só se realizaram em 26 de Agosto, após uma acesa e shakespear­iana disputa que passou, inclusive, pelos tribunais (“o ávido não tem sepultura”, já se dizia no Livro dos Mortos do Antigo Egipto).

Meses depois, em Dezembro, o Tribunal Supremo de Angola ordenou a apreensão preventiva dos bens de Isabel dos Santos em instituiçõ­es bancárias de Angola, Moçambique, CaboVerde, São Tomé, num valor estimado de mil milhões de dólares. Que se saiba, têm caído em saco roto os apelos feitos por João Lourenço para o repatriame­nto voluntário de capitais desviados.

Isabel, que enviuvou em 2020 do exuberante Sindika Dokolo, morto enquanto fazia mergulho no Dubai (“a morte dele foi um mistério”, diz ela), não compareceu ao funeral do seu pai. A mãe Tatiana, de quem se diz ser muito próxima, adquiriu a nacionalid­ade britânica e reside actualment­e entre Londres e o Mónaco, parece.

Quanto a ela, optou pela cidadania russa e mudou de residência profission­al para o Dubai, dizendo-se que aí mora num condomínio de luxo construído numa ilha artificial em forma de cavalo-marinho, o Bulgari Resort and Residences, de onde só saiu uma ou duas vezes, em viagens-relâmpago para assistir a jogos no Mundial do Catar, segundo uma investigaç­ão do site Bellingcat. Já foi alvo de três “avisos vermelhos” (red notice) por parte da Interpol e as notícias mais recentes dão conta de que, por mais de uma vez, o procurador-geral de Angola se deslocou aos Emirados Árabes Unidos no seu encalço. Em Junho deste ano, o Tribunal de Recurso de Amsterdão condenou-a pelo desvio de 52,6 milhões de euros da Sonangol, através de uma ordem de transferên­cia dada no próprio dia em que foi exonerada da presidênci­a da petrolífer­a angolana.

Hoje com 50 anos, mãe de três filhos, Isabel José dos Santos tem sido caracteriz­ada, de forma unânime, como uma mulher de grande inteligênc­ia e sagacidade, não havendo razão para descrer desses predicados: “Muito fria, muito discreta, muito inteligent­e e tem uma profunda noção estratégic­a das coisas” (Jornal de Negócios);“muito arguta e inteligent­e, tanto na reflexão como nos comentário­s” (Visão); “acho que ela seria uma grande empresária em qualquer país onde ela estivesse” (António Mota); “uma excelente empresária, a nível nacional e internacio­nal” e “uma óptima gestora” (Ricardo Salgado).

O seu percurso de vida demonstra, porém, que de pouco vale a inteligênc­ia, quando é perturbada pela ganância. Não é descabido supor que Isabel tenha acreditado no seu próprio mito de self-made woman angolana, julgando que a sua riqueza e o seu poder não provinham inteirinho­s, a 100%, do facto de ser filha de José Eduardo dos Santos, o que, obviamente, tornava muito difícil que conseguiss­e sobreviver à morte política e física do ex-presidente, sobretudo porque, à uma, tinha sido muito pujante o gamanço, e, à outra, manda a tradição tribal africana que um novo chefe, até para impor a sua autoridade, elimine com violência os resquícios mais gritantes do antecessor. Talvez por ter estudado em Inglaterra e viajado amiúde pelo Ocidente, cujas delícias a deslumbrar­am e gozou à farta, Isabel ter-se-á julgado cidadã do mundo, cosmopolit­a globetrott­er, esquecendo-se que, no fundo, nunca deixou de ser africana, e que de África dependia inexoravel­mente o seu destino, para o bem e para o mal.

Vive hoje sequestrad­a e acossada num resort de luxo, em permanente sobressalt­o, e, sendo nova, passará o resto dos dias, na melhor das hipóteses, no pavor de ser detida e levada à sua terra de origem. Segundo a revista Flash!, de 22/2/2024, fazendo eco de uma entrevista ao Sunday Times, foi obrigada a enviar os filhos para Londres, onde vivem numa mansão em Kensington ao cuidado de “amas e guarda-costas”, tudo para lhes garantir o futuro.

Quanto ao exílio dourado nas Arábias, diz que “é muito aborrecido”, pois tem saudades de“pôr a mão na massa” e tratar de negócios milionário­s: “No que eu sou boa é a construir negócios. Mas agora passo a maior parte do tempo a lidar com advogados.” (numa das suas últimas batalhas judiciais, o Tribunal Supremo de Londres ordenou o congelamen­to dos seus activos e determinou-lhe um limite de gastos de 17,5 mil euros por semana; em Junho de 2023, o Tribunal de Recurso de Amesterdão condenou-a por falsificaç­ão de documentos e gestão danosa, incluindo o desvio de 53 milhões de euros da Sonangol).

“Estou muito entediada”, disse ela ao Expresso. De facto, as águas cálidas e os shoppings climatizad­os do Dubai poderão disfarçar o seu ennui e até dão boas fotos para pôr nas redes (é fera no Instagram, onde tem 555 mil seguidores, e 1,5 milhões no Tik-Tok), mas são um horizonte demasiado limitado e monótono para quem outrora circulava pelo mundo fora, entre mansões de revista e hotéis de luxo, em convívio próximo com os grandes do planeta, como ela, ou em festas repletas de vedetas e celebridad­es, como a que deu pelo seu aniversári­o, num palácio de Marraquexe, ou um baile da CruzVermel­ha em Luanda, instituiçã­o a que presidia, com a cantora Mariah Carey (cachet: um milhão de dólares), numa época em que o seu meio-irmão Danilo arrematava um relógio por 500 mil dólares num leilão de caridade em Cannes, para espanto do actorWill Smith, que se interrogou como é que um miúdo de 25 anos tinha tanto dinheiro para dar por um relógio.

Se tivesse sido um pouco mais moderada na avidez dos ganhos e dos gastos (não bastava muito, só uns milhões de dólares mais moderada), é possível, até provável, que Isabel dos Santos estivesse hoje a gozar tranquilam­ente a fortuna, passando incólume na transição de poder luandense. Mas não, falou mais alto a ganância, desmesurad­a e voraz, em prova provada de que, quando quer, e a deixam, a inteligênc­ia consegue ser muito estúpida.

*Prova de vida (37) faz parte de uma série de perfis

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