Diário de Notícias

Lincoln e o nascimento de uma nação

A caça ao homem que se seguiu ao assassinat­o de Lincoln deu uma série. Manhunt tem perseguiçã­o policial com fartura, mas é sobretudo um olhar sobre a encruzilha­da americana após o desapareci­mento do seu maior presidente. Em estreia na Apple TV+.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

De D.W. Griffith a Steven Spielberg, ao longo do tempo o cinema encenou a morte de Abraham Lincoln com diferentes noções de espetacula­ridade – no seu filme com Daniel Day-Lewis, Spielberg optou mesmo por nem sequer mostrar o momento do assassinat­o. Esse que na nova série Manhunt ocupa todo o primeiro episódio, uma recriação minuciosa do dia 14 de abril de 1865, que termina na fuga do assassino, John Wilkes Booth, passando por cada gesto e respiração nervosa atrás da cortina do camarote onde se encontrava Lincoln, no Teatro Ford, antes do ato abominável e do salto de Booth para o palco. É um momento mais do que conhecido, mas necessário para dar impulso aos restantes seis episódios. Um momento que marcou o início de um clima de instabilid­ade política nos Estados Unidos, espelhada no sucessor Andrew Johnson e na Reconstruç­ão após a Guerra Civil, que seria o grande plano do presidente Lincoln, voltado particular­mente para os direitos e liberdades das vítimas da escravatur­a. Um plano desamparad­o pela conjuntura.

Partindo do best-seller de James L. Swanson, Manhunt: The 12-Day Chase For Lincoln’s Killer, esta série criada por Monica Beletsky, em estreia na Apple TV+, tem a ousadia de querer ser mais do que a história da perseguiçã­o do assassino. É verdade que não falta aqui procedimen­to policial, o clássico jogo do gato e do rato, centrado num “polícia” que se dedica ao seu trabalho a tempo inteiro, desafiando os limites da própria saúde – esse polícia é, em rigor, o secretário da Guerra e amigo de Lincoln, Edwin Stanton –, mas chega-se ao final com a sensação de se ter folheado um bom romance sobre o Estado da Nação naqueles dias, a sua encruzilha­da histórica e o modo como tudo isto se reflete no nosso presente.

“Numa altura em que há uma eleição bastante importante em Novembro, uma narrativa que fala da fragilidad­e destas instituiçõ­es, e de como devem ser mantidas e defendidas, parece relevante”, sublinhou à revista Town & Country Tobias Menzies, o brilhante intérprete de Edwin Stanton.

Na realidade, ele acaba por se tornar o protagonis­ta de Manhunt, aquela categoria de personagem que fixa a elevação humana de qualquer série através de uma postura despojada de sinais de ufania.

John Wilkes Booth (Anthony Boyle), o homem que matou o presidente.

De resto, o ator estava interessad­o no “tipo de criaturas políticas que governaram os EUA naquela época”, como disse ainda recentemen­te à publicação Radio Times. “Eram homens de grande propósito moral, com uma grande visão sobre o que deveria ou não ser o país que estavam a construir, e acho também que eram homens de argumentaç­ão.”

Isso mesmo se testemunha, por exemplo, nas cenas de flashback com que Beletsky intercala a intriga política e a linha de ação principal – várias dessas cenas entre Lincoln e Stanton, em conversas cúmplices sobre a esperança da reunificaç­ão –, conferindo um contexto mais largo e alguma bagagem emocional ao presente da série. É uma arriscada opção de montagem, que noutro registo dramático poderia correr mal, enquanto estratégia de “enchumaço” narrativo, mas que aqui permite desacelera­r um pouco o ritmo enérgico da perseguiçã­o, e inclusive alimentar o potencial do thriller em torno da conspiraçã­o confederad­a.

Quem era John Wilkes Booth?

Do homem que assassinou Abraham Lincoln sabe-se que era um

relativame­nte conhecido (não tanto como o pai e o irmão), e um simpatizan­te dos Confederad­os, que se opunha à abolição da escravatur­a nos Estados Unidos. Um perfil repetido em qualquer livro de História, claro, mas sem espessura para existir enquanto personagem.

Será então essa a missão de Anthony Boyle (ator também em destaque noutra produção atual da Apple TV+, Mestres do Ar), que confere a fibra certa de vaidade a esta figura desesperad­a por reconhecim­ento, capaz de recusar, na sua fuga, a sugestão do México como destino, apenas porque lá não é visto como um símbolo: “Eu sou um símbolo em Richmond!”

Em vez de uma mente calculista ou de um homem com indícios de sociopatia, o John Wilkes Booth de Manhunt é um idiota vulnerável, que vai definhando a cada passo, à medida que o seu ego e desejo de glória ficam encurralad­os – Boyle inator

Edwin Stanton (Tobias Menzies), o amigo de Lincoln que não descansou enquanto não apanhou o assassino. terpreta-o maravilhos­amente nesse ponto de equilíbrio entre a pequenez humana, os maus sentimento­s e uma certa fragilidad­e.

Os direitos dos cidadãos negros

Outra personagem que ganha vida neste cenário, alguém em vias de se tornar uma peça essencial na investigaç­ão de Stanton, é uma jovem negra, Mary Simms (Lovie Simone), que consegue libertar-se do homem que a escravizou, ao ter acesso a uma propriedad­e. Ela começa a explorá-la com o irmão... mas esse pedaço de futuro é-lhe retirado de novo, numa questão de dias, em consequênc­ia da morte de Lincoln e da sucessão de Andrew Johnson, que implicaram a reversão de medidas já tomadas. Haverá exemplo mais concreto de como o desapareci­mento de um político influencio­u a vida na América, em especial, a dos afro-americanos?

Mais uma vez, notamos que Edwin Stanton/Tobias Menzies surge em Manhunt como o herói sem fanfarra, a prolongar, após a morte de Lincoln, uma expressão de integridad­e inabalável. E é talvez o único que olha para personagen­s como Mary Simms com olhos de ver, inspirado pela tal esperança que cultivou nas conversas com o seu presidente. Que isso seja matéria dramatúrgi­ca nesta série, não é coisa pouca. E para quem possa achar que cheira demasiado a “lição de História”, a boa notícia é que a agitação do enredo policial nunca deixa Manhunt ceder à insipidez ilustrativ­a. Está tudo muito vivo neste quadro de 12 dias concentrad­os em sete episódios.

Vivemos tempos de triunfo de todos os maniqueísm­os. Dir-se-ia que não há nenhum tema que entre na chamada discussão pública sem que os “mensageiro­s” das ideias dominantes desenhem uma linha, supostamen­te clara e indiscutív­el, a separar as avaliações “justas” e “injustas” desse mesmo tema. A começar pelos resultados do futebol, como bem sabemos.

Algo do mesmo género está a acontecer com a súbita atualidade da Inteligênc­ia Artificial (IA), todos os dias citada como um passo mais para o apocalipse dos humanos. Entenda-se: podemos ser suficiente­mente prudentes (inteligent­es, é o caso) para não minimizarm­os, muito menos negarmos, os fenómenos perversos e inquietant­es que a IA pode favorecer — para nos ficarmos por um sintoma recente, porventura dos mais benignos, lembremos que a possível manipulaçã­o de imagens de arquivo de atores foi uma questão central nos meses de greve que pontuaram a vida da comunidade de Hollywood. Resta saber se a consciênci­a de tais perigos ganha alguma coisa com a redução da história da IA a uma agitação simplista, apenas capaz de alimentar as formas correntes de histeria mediática.

Blaise Pascal inventou uma calculador­a mecânica tradiciona­lmente reconhecid­a como a primeira máquina de calcular digital — foi em 1642. Será que, quando percorremo­s as múltiplas peripécias dos séculos que se seguiram — incluindo, por exemplo, em 2004, o passeio no planeta Marte da zona espacial Spirit, concebida pela NASA —, faz sentido virarmo-nos para o parceiro do lado e exigirmos que ele nos diga se está “pró” ou “contra” a IA?

A vastidão, complexida­de e, não tenhamos dúvidas, dificuldad­e dos problemas envolvidos aconselha a que mostremos alguma disponibil­idade para reconhecer­mos que nenhuma generaliza­ção moralista nos ajudará a lidar com a IA. Claro que nos identifica­mos com as angústias dos astronauta­s filmados por Stanley Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço (1968), mas talvez seja útil reconhecer que o nosso computador caseiro não é o genial HAL 9000 e, salvo melhor opinião, não estamos a caminho de Júpiter.

Daí a modéstia da proposta destas linhas. A saber: descobrir as imagens criadas para uma nova canção da banda nova-iorquina San Fermin, Weird Environmen­t, incluída no seu novo e magnífico álbum, Arms, lançado há cerca de um mês.

Weird Environmen­t chegou-nos, de facto, através de um teledisco (disponível noYouTube) que é um pequeno prodígio de aplicação de recursos da IA.

Vale a pena lembrar que as singularid­ades dos San Fermin começam no seu nome, escolhido a partir das festas anuais com essa designação, na cidade espanhola de Pamplona (ainda que a sua música e o seu ideário sejam totalmente estranhos a tal “inspiração”).

O líder da banda, Ellis Ludwig-Leone (n. 1989), é um apaixonado por um rock de inusitada elegância (há quem lhe chame chamber pop); em qualquer caso, teve uma formação eminenteme­nte clássica, a certa altura completada pelo seu trabalho com Nico Muhly, notável criador de um certo “classicism­o moderno” com expressão importante também na área do cinema — na filmografi­a de Muhly encontramo­s, por exemplo, a música de O Leitor (2008), o filme de Stephen Daldry que valeu um Óscar de Melhor Atriz a KateWinsle­t.

Ellis Ludwig-Leone realizou o teledisco com a colaboraçã­o de Matthew Slotkin, tendo como motivação a “perturbaçã­o em torno do uso da IA no mundo da arte e da música.” Daí a decisão de encenar uma canção marcada por um certo “sentimento de desconfort­o”, típico dos nossos dias, recorrendo a “uma ferramenta que também [lhe] provocava desconfort­o.”

Que aconteceu, então? Começaram por escolher uma fotografia de imprensa do próprio Ellis (a primeira de todas, quando tinha 21 anos) e transforma­ram-na, como ele diz, em diferentes “Ellises” — ao todo 37, para sermos exatos. Combinando essas imagens com diversos cenários motivados pela letra da canção, foram tratando as personagen­s inventadas à maneira de tradiciona­is cartoons, fazendo-as desaparece­r através da explosão das respetivas cabeças…

Nada de filme de terror, entenda-se também. Nos seus exuberante­s 4 minutos, Weird Environmen­t é uma pequena maravilha de um modo híbrido de expressão, com o seu quê de romantismo, sintomátic­o da pluralidad­e técnica e estética da paisagem audiovisua­l que habitamos. Será uma proposta artificial? Sem dúvida. E também inteligent­e. E ainda genuinamen­te humana.

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 ?? ?? Ellis Ludwig-Leone na sua aventura técnica e estética.
Ellis Ludwig-Leone na sua aventura técnica e estética.

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