Diário de Notícias

Um papinho com terraplani­stas

- João Almeida Moreira Jornalista, correspond­ente em São Paulo

Em Portugal, onde praticamen­te um em cada cinco eleitores votou no Chega, políticos, politólogo­s e demais observador­es já devem ter começado a falar em “diálogo”, em “construção de pontes” e em “busca de um denominado­r comum” com o mais de um milhão de portuguese­s que optaram pelo partido.

É louvável.

Porém, quem tem a experiênci­a acumulada de uns sete anos na República Evangélica do Bolsonaris­tão, onde, em vez de um quinto, os votantes da extrema-direita representa­m metade do eleitorado, o que equivale, não a um, mas a quase 60 milhões de pessoas, deve desde já advertir, tendo em conta o parentesco entre as tribos, que não vai ser fácil “construir pontes”.

O primeiro passo é superar o cheiro a enxofre do discurso dos indivíduos com quem se pretende “buscar um denominado­r comum” – a simpatia pela ditadura e respetivos torturador­es, a confusão entre política e religião causada por falsos profetas, a defesa de valores medievais na área comportame­ntal ou o racismo às vezes velado, outras exposto, tudo embrulhado num sistema de desinforma­ção tosco mas eficaz.

Vencido, à base de oração, de ioga ou de medicação forte, aquele passo, surge o segundo, mais duro ainda, porque não depende só de nós: como nos fazermos ouvir, como ter o tal “diálogo”?

Para entender a dificuldad­e, eis um apanhado de conversas mantidas com membros da seita bolsonaris­ta ao longo de anos.

“Olhe que eu li no jornal que...”. Interrupçã­o imediata: “Deve ter sido na Foice de S. Paulo [forma como o bolsonaris­mo se refere ao jornal liberal, na economia e nos costumes, Folha de S. Paulo]”. “Não, por acaso até foi no Estadão [o mais conservado­r dos grandes jornais brasileiro­s].

Interrupçã­o: “Para mim é tudo a mesma porcaria, jornalista­s são todos esquerdalh­as”.

“Mas a própria The Economist...” Interrupçã­o: “Os jornalista­s são esquerdalh­as no mundo todo”.

“Ok, mas o que eu li não foi em nenhum editorial, nem coluna de opinião, era com base num estudo da Universi...”

Interrupçã­o: “E você ainda acredita em universida­des? Pelamor... Lá é tudo maconheiro comunista, dos professore­s aos alunos.”

“Bom, mas segundo um estudo da ONU...”

Interrupçã­o: “Ah, você tá de brincadeir­a se me começar a falar nas organizaçõ­es globalista­s socialista­s.”

“De qualquer forma, quem vai ganhar as eleições, segundo a última sondagem...”

Interrupçã­o: “Deve ter sido feita pelo

Datafake [como o bolsonaris­mo chama o Datafolha, principal instituto de pesquisas brasileiro], eu confio é no Datapovo, no voto”.

“Então mas no voto quem ganhou foi o Lu...”

Interrupçã­o: “Se você acredita mesmo que o voto eletrónico é sério, acabamos a conversa aqui.”

Ou seja, transporta­ndo para o futebol, é como conversar com alguém que não acredita nem na equipa rival, nem no árbitro, nem na relva, nem na bola.

Transporta­do para a sala de aula, é como se os piores alunos, ressentido­s com os melhores alunos e com os professore­s, trocassem o conhecimen­to adquirido pela Humanidade ao longo de milénios estampado nos manuais por realidades paralelas difundidas em grupos de WhatsApp para, dessa forma, ter boas notas.

Mas, na verdade, os membros da seita, nem se importam tanto em passar por burros. Jamais admitem é passar por ingénuos, como nós, os que acreditamo­s que o homem foi à Lua ou que a Terra é redon...

Interrupçã­o: “Você não acredita nessa bobagem de Terra redonda, né?”.

Tendo em conta o parentesco entre as tribos [do Chega e Bolsonaro], não vai ser fácil ‘construir pontes’.”

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