Um lugar bem fundo na angústia
Um homem a descobrir o seu passado e as suas perdas. Fulgurante o exercício de Andrew Haigh em Desconhecidos, esta semana na Disney+ sem passar pelas salas (!). O filme que está a consagrar o enorme Andrew Scott e confirma Paul Mescal. Obrigatório, mesmo!
Houvesse letras garrafais a bold suficientemente grandes, este All of Us Strangers foi o grande pecado da Academia de Hollywood nestes últimos Óscares. A sua omissão da lista de nomeados revela ainda um preconceito grande dos votantes perante filmes que encenam a questão identitária gay, mesmo se pensarmos que Andrew Haigh fez um objeto que caia ou se reduza na catalogação de “filme gay”. O seu cinema já há muito que vem transcendendo parâmetros e caixas, nomeadamente após o tão esplendoroso 45 Anos, de 2015.
Um cineasta capaz de ter um universo muito dele, escapando a uma certa estagnação do novíssimo cinema britânico.
O rapaz da torre
Pensado como um lamento interior, Desconhecidos parte da observação de um solitário nesta Londres de todas as solidões. Conhecemos Adam, argumentista que vive numa nova torre de Londres.
No seu mundo não parece haver amigos ou comunicações, alguém que da sua janela vê a cidade e as suas luzes com uma tristeza que se intui. Trata-se de um homem que abandonou o mundo exterior e os outros e apenas é capaz de se entregar à ficção que cria.
A sua rotina começa a mudar quando decide ir ao subúrbio e espreitar a casa onde foi criado com os pais que não vê há 30 anos. Ao mesmo tempo, desenvolve uma amizade com um novo vizinho, Harry, alguém que poderá ser uma espécie de confidente. Entre os dois começa a haver uma atração que se torna um romance tão suave como natural.
Harry e Adam talvez tenham a doença urbana que costuma descambar em depressão, mas Adam continua cada vez mais atormentado com as memórias da infância: a figura do pai, a figura da mãe, a forma como o seu “coming out” foi feita e uma série de outros traumas.
Baseada muito livremente num livro deTaichiYamada, esta é uma história de isolamentos e incomunicabilidade, flagelo muito londrino nestes dias, onde muitos são e poram-se como os últimos homens na Terra. Longe do mundo, longe de tudo e ao som dos Frankie Goes to Hollywood num pôr do sol estrelado.
Para onde vai este filme?
O que é bastante pujante e subversivo são as pistas que o realizador nos dá: estamos a ver algo figurativo ou narrativo? Será thriller ou drama psicológico? Isso é extremamente engenhoso e somos obrigados a ir para os cantos inesperados que a trama nos leva. Andrew Haigh está sempre a controlar. De onde não foge nunca é de uma sensação de perda e abandono. Daí o lado tristíssimo deste conto de rejeição, quase sempre perto da fragilidade humana. São seguramente blues queer sobre a condição de encarar a orientação sexual como fardo social e familiar.
Paralelamente, Haigh joga todas as fichas no poder de encanto dos seus dois atores, em especial o protagonista, Andrew Scott (o C de 007 e presença regular em séries como Fleabag...), nomeado para o Golden Globe na categoria dos filmes dramáticos. Ator que é capaz de uma retenção emocional soberba e cujo mapa facial é uma experiência de múltiplas emoções, perfeito para dar a esta personagem alienada o tom certo de mágoa e ternura.
Creio que depois do efeito das críticas positivas que teve aqui e, agora, com a chegada à Netflix de Ripley, a partir da obra de Patricia Highsmith, este irlandês tornar-se-á figura de topo no cinema anglo-saxónico. Mas depois também há um excelente Paul Mescal (Aftersun), sem necessidades de tiques, eficiente a dar a réplica dramática a Scott e a encarnar um estilo contemporâneo de novo solitário. Tal como em Foe, de Garth Davis, com muito pouco entrega muito. Espantoso que dentro de uma ordem concetual, este seja eminentemente um “filme de atores”, capaz ainda de dar papéis carnudos a Claire Foy e Jamie Bell, a comporem pais dos Anos 1990, intrinsecamente da classe trabalhadora.
Aquela infância poderia ser a minha
Com fintas e mais fintas, Desconhecidos está a coberto do mero efeito de truques. Pelo contrário, exibe de forma estimulante todas as possibilidades narrativas. Porventura só não atinge o Olimpo por deixar algum rasto de psicanálise gay encenada, mas é sempre bom frisar que o abalo que este O Sexto Sentido existencialista nos provoca compensa um ou outro percalço.
E se a angústia e a neurose da personagem passam para o outro lado do ecrã tal não sucede pela tag gay – acontece porque o procedimento dramático de Haigh está inspiradíssimo, em particular nessa gestão de viagem à nossa infância, ao nosso passado. Aí todos se identificam, inclusive quem nunca pôde falar da sua vida adulta aos pais. Seguramente que é por aí que a alegoria fantasmagórica ganha uma elevação literária. Ou o nascimento de um conto de almas do outro mundo com poderes tearjerker...
Haja então espectadores com coragem de enfrentar este mecanismo de ficção tão complexo e delicado, ainda para mais numa plataforma que o mistura com as joias de animação da Disney e o fenómeno de popularidade que é Pobres Criaturas, de Yorgos Lanthimos. Por alguma razão, a NOS Audiovisuais não o quis nas salas... Dê por onde der, Haigh e os seus maravilhosos atores transportam-nos para um lugar de grandes sentimentos verdadeiros. Vale a pena assinar a Disney+ só para o apanhar...