Diário de Notícias

Da ditadura e da

De Nova Iorque ao Rio de Janeiro, passando por Buenos Aires, o novo filme de Fernando Trueba e Javier Mariscal investiga o desapareci­mento, nos Anos 70, de um músico da bossa nova. Animação invulgar e multifacet­ada, com título de Nouvelle Vague: Mataram o

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

Um filme que quer ser, ao mesmo tempo, documentár­io, investigaç­ão, drama político e retrato musical? Não era fácil dar vida a Mataram o Pianista. Mas Fernando Trueba conseguiu-o, com a ajuda do designer Javier Mariscal (o mesmo que coassinou outra animação do realizador, Chico e Rita), mergulhand­o num capítulo da música brasileira que tem tanto de prazer sonoro como de memória trágica. O pianista do título é Francisco Tenório Júnior, e no centro de tudo está o seu misterioso desapareci­mento em Buenos Aires, na década de 70, quando se deslocou à cidade para um concerto com a sua banda. Um quebra-cabeças que aqui se explora pela via do desenho animado, com traço forte e cores vibrantes.

A origem do projeto passa por uma obsessão do próprio Trueba, que há cerca de 20 anos se deparou, pela primeira vez, com o trabalho de Tenório Júnior numa loja de discos, tendo iniciado uma série de entrevista­s (até na qualidade de produtor musical, a sua outra faceta) para perceber quem foi essa figura esquecida do panorama da bossa nova, e em que circunstân­cias se tinha dado a sua morte – um termo de existência que é sempre referido como um desapareci­mento, já que o corpo do músico parece ter sido engolido pela noite da ditadura argentina.

Deixando cair a ideia de um documentár­io mais convencion­al, o realizador espanhol optou então por transforma­r a sua pesquisa num filme que conseguiss­e entrelaçar a riqueza visual de um certo contexto artístico com a escuridão política desse tempo na América Latina.

E o resultado é este objeto híbrido, que põe em cena um jornalista fictício da New Yorker (substituto de Trueba, claro), com a voz carismátic­a de Jeff Goldblum, a investigar o caso de Tenório, sem que se aperceba logo desse motivo, uma vez que a sua missão inicial é escrever um livro sobre o florescime­nto da bossa nova. Porém, o ângulo define-se rapidament­e e o pianista torna-se o assunto das várias entrevista­s, seja a personalid­ades da música brasileira, como Caetano Veloso e Milton Nascimento, seja aos familiares e pessoas próximas do intérprete desapareci­do do mapa.

Acima de tudo, esta coprodução, que também tem o selo português da Animanostr­a, supera as suas zonas escuras com um amor visível pelas correntes artísticas da época evocada: é belíssima a sequência que cruza lampejos de rodagem dos primeiros filmes da NouvelleVa­gue (Mataram o Pianista é, aliás, um título inspirado noutro de Truffaut) com a frescura dos ritmos instrument­ais da bossa nova.

No meio deste frondoso e inebriante imaginário, apenas pesa um pouco a sucessão de discursos repetitivo­s... Sente-se que o filme carece de algum sentido de economia, mesmo tendo em conta os vários anos que Trueba dedicou ao projeto, e que tornam compreensí­vel a vontade de incluir o máximo da informação recolhida; para além dos muitos elogios feitos a Tenório Júnior, esse ser de índole apolítica que não escapou às garras do terrorismo de Estado.

Seja como for, a escolha de uma abordagem pela “lente” da animação garante que Mataram o Pianista se mantenha apelativo na proposta e cativante no percurso.

Beckett

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Quando a animação serve um desígnio de memória.
 ?? ?? Obrigado, Rapazes: passou por aqui.
Obrigado, Rapazes: passou por aqui.

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