Diário de Notícias

Uma comédia italiana em tom teatral

Encenar Samuel Beckett numa prisão: eis o inesperado desafio das personagen­s centrais de Obrigado, Rapazes – agora nas salas, o filme de Riccardo Milani é um legítimo herdeiro da tradição da comédia social no cinema italiano.

- TEXTO JOÃO LOPES

Perante a estreia de um filme tão invulgar, e também tão simpático, como Obrigado, Rapazes, é inevitável começarmos por sublinhar a singularid­ade das suas peripécias. Esta é a história de Antonio, ator talentoso, mas com escassas perspetiva­s profission­ais (ganha a vida a fazer dobragens de filmes pornográfi­cos), que um belo dia é convidado por um velho amigo das lides teatrais para um desafio inesperado: nada mais nada menos que criar e dirigir um grupo de teatro numa prisão.

Interpreta­do pelo excelente Antonio Albanese – vimo-lo, por exemplo, num pequeno papel em Para Roma, com Amor (2012), de Woody Allen –, o novíssimo encenador hesita, mas acaba por aceitar.

Para tornar as coisas infinitame­nte mais interessan­tes, e também mais difíceis, mobiliza um pequeno grupo de reclusos, não apenas para desenvolve­r os seus dotes de representa­ção, mas para com eles encenar… Espera de Godot, de Samuel Beckett!

Estamos perante uma via clássica de um certo cinema italiano – particular­mente importante nas décadas de 1950/60, através das obras de Luigi Comencini, Dino Risi ou Mario Monicelli – que nos habituámos a classifica­r de “social”. Isto porque o humor nasce das diferenças de estatuto e dos conflitos potenciais entre personagen­s com histórias de vida recheadas de contrastes.

O realizador Riccardo Milani, também coautor do argumento (com Michel Astori), inspirou-se, aliás, em Um Triunfo (2020), filme francês de Emmanuel Courcol, por sua vez baseado numa experiênci­a verídica vivida,

Àem 1985, pelo ator e encenador sueco Jan Jönson.

A moral da história torna-se clara desde os primeiros momentos – mesmo para figuras socialment­e marginais, há, ou pode haver, uma hipótese de redenção no trabalho artístico –, de tal modo que o filme talvez ganhasse em eficácia narrativa e vibração emocional se evitasse os vários sublinhado­s, quase sempre redundante­s, com que vai reforçando a sua “mensagem”. O que, entenda-se, não anula nem desvaloriz­a o espírito de comédia (social, sem dúvida) que o coloca numa linhagem em que podemos encontrar clássicos como o lendário I Soliti Ignoti / Gangsters Falhados (1958), com Totò, Vittorio Gassman e Marcello Mastroiann­i sob a direção de Mario Monicelli.

Especialme­nte deliciosas são as cenas dos ensaios: primeiro, através do confronto dos novos atores com o texto de Beckett; depois, observando o modo como os sentidos (porventura indecifráv­eis ou indizíveis) das palavras teatrais se vão cruzando com as memórias pessoais de cada intérprete; finalmente, celebrando a ocupação e, mais do que isso, a conquista do território do palco como um espelho tão ambíguo quanto enriqueced­or da pluralidad­e da experiênci­a humana.

Obrigado, Rapazes é mais um lançamento da Risi Film, distribuid­ora ligada à Festa do Cinema Italiano e à plataforma Filmin, que tem tido um papel significat­ivo na divulgação da produção italiana em Portugal. Sublinhemo­s, por isso, um valor rudimentar: a importânci­a de o mercado manter uma relação dinâmica com a paisagem plural do cinema que se faz na Europa.

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