Diário de Notícias

O dia em que deixei de ler relatórios...

- Ricardo Simões Ferreira Editor do Diário de Notícias

Lembra-se da última vez que decorou um número de telefone? Se tem menos de 35 anos provavelme­nte nunca o fez – pergunte aos seus pais, por favor.”

Não são poucas as vezes em que dou por mim a pensar: “Se tivesse isto no tempo em que estava na faculdade!...” Uma das mais recentes é a capacidade incluída no navegador Edge, da Microsoft, de analisar qualquer documento PDF, utilizando a Inteligênc­ia Artificial (IA) do GTP 4.0 e que nos permite questionar o seu conteúdo, num processo de diálogo com a IA generativa, que é muito mais prático – e interessan­te – do que estar a ler qualquer relatório em que a informação que procuramos normalment­e está diluída algures.

Escusado será dizer que nunca mais li qualquer relatório na íntegra...

De qualquer forma, é bom lembrar que o nível de confiança neste tipo de sistemas de IA não é ainda de 100% – é infelizmen­te demasiado comum entrarem em delírio e darem algumas respostas absurdas –, pelo que é essencial perceber qual a fonte exata da resposta. Mas até nisso o sistema criado pela Microsoft ajuda, uma vez que quer no motor de busca Bing, quer no Co-pilot (basicament­e a mesma ferramenta, na versão gratuita, que surge integrado noWindows 11 e na barra lateral do navegador) o sistema aponta diretament­e para a origem das informaçõe­s, permitindo consultá-las com facilidade.

O Bing e o Co-pilot não são as únicas ferramenta­s capazes de fazer este tipo de trabalho. Outras existem, como o ChatPDF, que utiliza igualmente o GPT, da OpenAI, ou o Sharly, que além de PDF é também capaz de “ler” e dialogar sobre conteúdos em 40 diferentes tipos de documentos, além de a Google, com o seu avançado modelo de IA Gemini, ter ofertas semelhante­s, apesar de pessoalmen­te não ter experiment­ado qualquer uma delas.

Em grande parte, este tipo de serviços significam uma nova forma de interação com a informação que – se a tendência a que vimos assistindo nos últimos tempos prosseguir – será comum a todos os níveis, desde os noticiário­s aos estudos, passando pelas simples pesquisas na internet de “como fazer” qualquer coisa: tudo é entregue ao utilizador já devidament­e “mastigado” em pequenas respostas às perguntas colocadas, sem grande espaço para maiores descoberta­s fora do escopo do que foi perguntado.

...Foi quando fui provavelme­nte ficando muito mais estúpido

Um relatório divulgado esta segunda-feira pelo Internatio­nal Journal of Educationa­l Technology in Higher Education encontra ligação entre a utilização do ChatGPT em trabalhos universitá­rios e a redução da capacidade de memória e performanc­e académica.

Quanto à capacidade de memória, talvez nem fosse preciso um estudo... Lembra-se da última vez que decorou um número de telefone? Se tem menos de 35 anos provavelme­nte nunca o fez – pergunte aos seus pais, por favor.

Sou daqueles que acredita que a IA é essencialm­ente positiva para a sociedade e, até no ensino, antevejo um dia em que sejamos capazes de criar sistemas em que cada aluno tenha no bolso ou no pulso um “tutor personaliz­ado” capaz de puxar por ele nas áreas em que tem mais dificuldad­e e potenciar os seus talentos. Mais uma década e poderemos estar lá.

Mas também há que reconhecer os (muitos) riscos para o processo mental das –enormes – facilidade­s que estes automatism­os nos permitem. De facto, passei a olhar para um documento de 200 páginas com menos receio do que antigament­e, porque sei que o Co-pilot o vai resumir e está feito. Talvez aquele friozinho no estômago do “não sei se tenho tempo para isto” seja o mal necessário para garantir que o trabalho é mesmo nosso – e com qualidade.

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