O dia em que deixei de ler relatórios...
Lembra-se da última vez que decorou um número de telefone? Se tem menos de 35 anos provavelmente nunca o fez – pergunte aos seus pais, por favor.”
Não são poucas as vezes em que dou por mim a pensar: “Se tivesse isto no tempo em que estava na faculdade!...” Uma das mais recentes é a capacidade incluída no navegador Edge, da Microsoft, de analisar qualquer documento PDF, utilizando a Inteligência Artificial (IA) do GTP 4.0 e que nos permite questionar o seu conteúdo, num processo de diálogo com a IA generativa, que é muito mais prático – e interessante – do que estar a ler qualquer relatório em que a informação que procuramos normalmente está diluída algures.
Escusado será dizer que nunca mais li qualquer relatório na íntegra...
De qualquer forma, é bom lembrar que o nível de confiança neste tipo de sistemas de IA não é ainda de 100% – é infelizmente demasiado comum entrarem em delírio e darem algumas respostas absurdas –, pelo que é essencial perceber qual a fonte exata da resposta. Mas até nisso o sistema criado pela Microsoft ajuda, uma vez que quer no motor de busca Bing, quer no Co-pilot (basicamente a mesma ferramenta, na versão gratuita, que surge integrado noWindows 11 e na barra lateral do navegador) o sistema aponta diretamente para a origem das informações, permitindo consultá-las com facilidade.
O Bing e o Co-pilot não são as únicas ferramentas capazes de fazer este tipo de trabalho. Outras existem, como o ChatPDF, que utiliza igualmente o GPT, da OpenAI, ou o Sharly, que além de PDF é também capaz de “ler” e dialogar sobre conteúdos em 40 diferentes tipos de documentos, além de a Google, com o seu avançado modelo de IA Gemini, ter ofertas semelhantes, apesar de pessoalmente não ter experimentado qualquer uma delas.
Em grande parte, este tipo de serviços significam uma nova forma de interação com a informação que – se a tendência a que vimos assistindo nos últimos tempos prosseguir – será comum a todos os níveis, desde os noticiários aos estudos, passando pelas simples pesquisas na internet de “como fazer” qualquer coisa: tudo é entregue ao utilizador já devidamente “mastigado” em pequenas respostas às perguntas colocadas, sem grande espaço para maiores descobertas fora do escopo do que foi perguntado.
...Foi quando fui provavelmente ficando muito mais estúpido
Um relatório divulgado esta segunda-feira pelo International Journal of Educational Technology in Higher Education encontra ligação entre a utilização do ChatGPT em trabalhos universitários e a redução da capacidade de memória e performance académica.
Quanto à capacidade de memória, talvez nem fosse preciso um estudo... Lembra-se da última vez que decorou um número de telefone? Se tem menos de 35 anos provavelmente nunca o fez – pergunte aos seus pais, por favor.
Sou daqueles que acredita que a IA é essencialmente positiva para a sociedade e, até no ensino, antevejo um dia em que sejamos capazes de criar sistemas em que cada aluno tenha no bolso ou no pulso um “tutor personalizado” capaz de puxar por ele nas áreas em que tem mais dificuldade e potenciar os seus talentos. Mais uma década e poderemos estar lá.
Mas também há que reconhecer os (muitos) riscos para o processo mental das –enormes – facilidades que estes automatismos nos permitem. De facto, passei a olhar para um documento de 200 páginas com menos receio do que antigamente, porque sei que o Co-pilot o vai resumir e está feito. Talvez aquele friozinho no estômago do “não sei se tenho tempo para isto” seja o mal necessário para garantir que o trabalho é mesmo nosso – e com qualidade.