Diário de Notícias

Onde eu estava

José Manuel Trigo nasceu em Olhão da Restauraçã­o, em 1949. É empresário.

- Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

Em 1974, vivia em Faro. Vendia terrenos na Quinta do Lago, projeto de André Jordan, e tinha uma vida santa. Esperávamo­s os clientes a quem mostrávamo­s os terrenos, trabalho muito bem pago. Recebia 13 500 escudos quando um bancário, por exemplo, ganhava três mil.

O Algarve daquela época tinha muito menos turismo, é verdade, mas o que tinha era de alta qualidade. De resto, toda a política governamen­tal incentivav­a a que assim fosse. Basta ver a quantidade de hotéis de cinco estrelas que então existiam: Penha, Alvor, Balaia, D. Filipa,Vasco da Gama, entre outros. Dou muitas vezes este exemplo: a pequena tasquinha em Albufeira onde se podia escolher o peixe e fazer a própria salada – simplicida­de que foi ganhando adeptos, ainda que neste caso não passasse de uma tasca – acumulava à porta Rolls-Royce e Bentley, hoje tão raros nas ruas do Algarve.

Deva dizer-se que nós, algarvios, raramente jantávamos fora. Mas já havia restaurant­es com muita e merecida fama. A Casa Velha na Quinta do Lago, frequentad­a sobretudo por clientes que vinham do Hotel da Penha e do Hotel Alvor. A Ruína e o António Catuna, em Alção bufeira, casas igualmente muito procuradas pelos turistas com maior poder de compra.

A noite era já animada, com muitas discotecas e noites temáticas. Por exemplo, com a participa

de ranchos folclórico­s, predileção dos turistas. E, claro, muito uísque à mistura, que naqueles anos pedir uma taça de vinho numa discoteca causaria enorme estranheza. Aliás, nem se servia por não ser chique.

Faro e Albufeira eram as grandes ‘movidas’ do Algarve (a zona de Tavira era simpática, mas com turismo residual). Os locais mais chiques eram a Balaia, Vale do Lobo, Albufeira e Praia da Rocha. Recordo com saudade as discotecas KONTIKI, Sherazade, Gemini, Farra. Em Albufeira havia o Sete e Meio, o Pescador e o Silvia’s. A noite começava no Sir Harris Bar.

Era o tempo das loiras suecas e inglesas e eu, jovem e solteiro, não me fazia rogado. A tripulação da companhia aérea sueca costumava ficar no Hotel Faro, onde o meu pai era diretor. Portanto, não era complicado para mim frequentar o bar.

O contraste com as raparigas portuguesa­s era enorme. Ao recato das nacionais, mesmo das mais rebeldes, correspond­ia já então uma enorme liberdade sexual, sobretudo das nórdicas.

Naquele tempo, comprava a roupa numa loja simpática e personaliz­ada em Faro. Ou mandava fazer por medida. Raramente ia a Lisboa e quando acontecia não passava dos cafés Suíça, Mexicana, Vavá ou da galeria RITZ, onde se podia comer um snack.

Em março de 1974, já conhecia a Guerra Colonial. Estive 24 meses em Dembos, norte de Angola, uma área altamente militariza­da, membro de uma companhia de intervençã­o que prestava auxílio a companhias em perigo e vigiava a estrada que ia de Carmona a Luanda, a chamada rota do café, para proteção das viaturas. Dois anos de isolamento, no morro, à espera de um ataque ou de irmos para a batalha. Comunicava com a família apenas por aerograma, que chegavam quando chegavam.

Parti de Lisboa no paquete Vera Cruz, às seis da manhã. Os meus pais foram despedir-se de mim. Em Luanda, fui surpreendi­do pelo desenvolvi­mento da cidade. Moderna, mais desenvolvi­da do que algumas capitais de distrito portuguesa­s. O clima ajudava as pessoas a serem mais abertas.

Desses anos recordo-me de ser um jovem atlético – graças à boa formação física que tive nos anos de Colégio La Salle que tanto me tem ajudado até hoje –, de temperamen­to muito tranquilo.

“Em março de 1974, já conhecia a Guerra Colonial. [...] Dois anos de isolamento, no morro, à espera de um ataque ou de irmos para a batalha.”

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