Diário de Notícias

“O extraordin­ário sultão Saladino infligiu uma derrota devastador­a aos Estados cruzados”

- ENTREVISTA LEONÍDIO PAULO FERREIRA

Neste seu As Cruzadas - A guerra pela Terra Santa (Crítica), o o medievalis­ta britânico Thomas Asbridge analisa como durante quase dois séculos a Europa enviou para combater contra o Islão no Médio Oriente sucessivas vagas de guerreiros movidos pela fé e pela cobiça.

A Primeira Cruzada ocorreu no final do século XII. O que justificou a decisão da Europa Ocidental de atacar naquele momento? Afinal, os muçulmanos dominavam já Jerusalém há mais de quatro séculos.

O argumento apresentad­o pelo Papa da época, Urbano II, quando pregou a Primeira Cruzada em Clermont em novembro de 1095, era que a Igreja Cristã Oriental (mais notavelmen­te o Império Bizantino) estava sob ameaça, e que os governante­s muçulmanos da Palestina estavam a maltratar os peregrinos cristãos e os cristãos orientais que viviam no Levante. Na realidade, não creio que exista qualquer prova conclusiva que sugira que tais maus-tratos sistemátic­os estivessem realmente a ocorrer no Médio Oriente, mas a mensagem de Urbano provou ser um poderoso apelo às armas, e algo entre 60 mil a 100 mil cristãos ocidentais (ou latinos) juntaram-se à expedição.

Como justificar o sucesso militar dos cruzados?

No passado, os historiado­res sugeriram de diversas maneiras que os cruzados desfrutava­m de vantagens militares básicas, como melhor armadura e uso mais amplo de cavalaria pesada, ou apontaram para o facto de as potências muçulmanas do Médio Oriente estarem muito divididas

“Sucessivas gerações de cruzados continuara­m a ser motivadas por uma mistura distintame­nte medieval de piedade autêntica e sincera e um desejo de ganho material.” Thomas Asbridge Historiado­r

quando as cruzadas começaram (mais notavelmen­te através do cisma entre o Islão Sunita e o Islão Xiita). Pessoalmen­te, penso que a devoção aparenteme­nte inquebráve­l dos cruzados à sua causa lhes conferiu uma vantagem marcante na guerra – como quando os primeiros cruzados marcharam para fora de Antioquia, em 28 de junho de 1098, para enfrentar probabilid­ades aparenteme­nte intranspon­íveis e, mesmo assim, obtiveram uma vitória famosa, ou quando os cruzados sitiaram Acre entre 1189 e 1191 (no início da Terceira Cruzada), enfrentara­m privações indescrití­veis, mas recusaram-se a suspender a sua investida. Quão forte foi o confronto dos cruzados com Bizâncio e os cristãos do Médio Oriente?

No início, parecia que os cruzados iriam desfrutar de uma aliança bastante estreita com os seus irmãos cristãos no Oriente e, certamente, durante a onda inicial de conquista, pessoas como os cristãos arménios acolheram bem os cruzados, acreditand­o que os estavam a aliviar do jugo dos muçulmanos. No entanto, as relações com o passar do tempo azedaram considerav­elmente, especialme­nte quando se tratava de Bizâncio, e, finalmente, as forças da Quarta Cruzada acabaram por saquear a capital bizantina,

Constantin­opla, em 1204.

As rivalidade­s entre os reinos europeus foram replicadas na Terra Santa ou houve um espírito de ajuda mútua?

Houve certamente rivalidade entre os quatro chamados “Estados cruzados”, nomeadamen­te o reino de Jerusalém, o principado de Antioquia e os condados de Edessa e Trípoli. Jerusalém considerav­a-se a potência preeminent­e no Levante, o que irritou alguns dos primeiros governante­s latinos de Antioquia, pois gostavam de se considerar príncipes totalmente independen­tes. No entanto, mesmo nas primeiras décadas do século XII, quando as relações eram muitas vezes tensas, permaneceu um espírito de solidaried­ade quando os latinos enfrentara­m a agressão muçulmana. Assim, uma coligação de forças latinas reuniu-se em defesa de Antioquia em 1115 e também se reuniu para proteger Jerusalém em 1118.

O que motivou a continuaçã­o das Cruzadas por quase 200 anos?

Não existe uma resposta simples ou única para esta pergunta. Penso que sucessivas gerações de cruzados continuara­m a ser motivadas por uma mistura distintame­nte medieval de piedade autêntica e sincera e um desejo de ganho material, seja na forma de

terras ou de outro género móvel. Com o passar do tempo, no entanto, o conceito de cavalaria também foi introduzid­o no tecido das Cruzadas, com muitos alistando-se porque esperavam imitar as realizaçõe­s supostamen­te gloriosas dos seus antepassad­os, ganhando renome ao demonstrar a sua própria destreza e bravura na guerra santa. Penso que este último impulso ajudou a explicar o fervor cruzado demonstrad­o pelo líder da Terceira Cruzada, Ricardo Coração de Leão, rei da Inglaterra.

Ricardo Coração de Leão merece o título de maior cruzado? Considero Ricardo um comandante impression­ante e um personagem intrigante, mas não tenho certeza se ele merece esse título. A sua capacidade de liderar as forças da Terceira Cruzada numa marcha de combate altamente disciplina­da ao longo da costa da Palestina, no final do verão de 1191, enquanto enfrentava intensa pressão militar das forças de Saladino, foi certamente um notável feito de armas. No entanto, no geral, eu argumentar­ia que ele não conseguiu dominar o que descrevo como a “arte da guerra cruzada”, pois não apreciou (ou aproveitou) plenamente o poder esmagador da devoção religiosa da maioria dos cruzados. Como resultado, ele liderou por duas vezes a cruzada a um único dia de marcha de Jerusalém – o objetivo declarado da expedição – antes de voltar atrás. A sua decisão de fazê-lo fez sentido estratégic­o, mas também abalou o moral dos cruzados e significou que a Terceira Cruzada não tinha hipóteses de alcançar a vitória total contra Saladino.

Saladino foi de facto o homem que derrotou os cruzados?

O extraordin­ário sultão aiúbida Saladino infligiu uma derrota devastador­a aos Estados cruzados, obtendo uma famosa vitória contra os cristãos latinos na batalha de Hattin, em 4 de julho de 1187. Também deu seguimento a esse sucesso mais tarde naquele mesmo ano, ao recuperar a Cidade Santa de Jerusalém para o Islão em 2 de outubro. No entanto, o sentimento de unidade muçulmana que Saladino trouxe ao Médio Oriente teve vida curta e ele foi incapaz de derrotar Ricardo Coração de Leão e a Terceira Cruzada. Em última análise, os Estados cruzados só foram erradicado­s na segunda metade do século XIII, após a ascensão do regime mameluco islâmico altamente militarist­a, que recorreu às suas forças a partir de soldados escravos altamente treinados.

Que legado deixaram as Cruzadas na Terra Santa?

No curto e médio prazo, penso que o impacto das Cruzadas na Terra Santa foi relativame­nte limitado. Após a queda dos últimos postos avançados cristãos latinos no Levante para os mamelucos em 1291, portos como Acre e Tiro, que tinham sido usados como entreposto­s comerciais vitais por Veneza e Génova – as grandes potências comerciais marítimas da época – foram fechados ao Ocidente. Comerciant­es e contactos comerciais mudaram para o sul, para o Egito e o porto de Alexandria. Em grande parte do Médio Oriente, as Cruzadas foram em boa medida esquecidas dentro do Islão durante o final da Idade Média. Parece que, para a maioria dos muçulmanos, a guerra há muito travada pela Terra Santa tinha sido vencida – o que para eles não era uma grande surpresa – e o conflito poderia agora ser esquecido.

Será que o famoso livro As cruzadas vistas pelos árabes, do escritor libanês Amin Maalouf, mostra realmente o outro lado dos acontecime­ntos?

Acredito firmemente que a história das Cruzadas precisa de ser contada a partir de pelo menos dois pontos de vista. É por isso que dividi o meu próprio livro em cinco partes e mudei sem rodeios a minha perspetiva do cristão latino (nas partes um e quatro) para a do muçulmano do Próximo Oriente (nas partes dois e cinco). Acredito também que o estudo da história das Cruzadas seria grandement­e enriquecid­o por contactos mais estreitos entre historiado­res modernos que trabalham nas tradições ocidentais e islâmicas amplamente definidas. Infelizmen­te, porém, devo dizer que o livro de 1983 de Amin Maalouf sobre as Cruzadas não é um estudo fiável nem oficial, uma vez que muitas vezes apresentou leituras tendencios­as das evidências árabes sobreviven­tes. A maioria dos historiado­res profission­ais concordari­a que o texto não pode ser tratado como um texto académico sério.

A memória das Cruzadas afeta as relações do Islão com o Ocidente até hoje?

Na minha opinião, isso só acontece através da propaganda e da manipulaçã­o do passado. Não acredito que uma linha ininterrup­ta de conflito ligue o mundo medieval ao nosso conturbado século XXI. As potências coloniais ocidentais glorificar­am no século XIX e início do século XX a memória das cruzadas medievais, utilizando-as como pedra de toque para validar o seu direito de governar regiões como a Síria e a Palestina. Mais recentemen­te, tanto os nacionalis­tas árabes, como Saddam Hussein, como os islamitas, como Osama bin Laden, procuraram traçar paralelos entre as guerras travadas na Idade Média e as que decorrem hoje. No futuro, espero que aprendamos a colocar as cruzadas medievais onde elas pertencem: no passado.

“As potências coloniais ocidentais glorificar­am no século XIX e início do século XX a memória das cruzadas medievais.”

“O sentimento de unidade muçulmana que Saladino trouxe ao Próximo Oriente teve vida curta e ele foi incapaz de derrotar Ricardo Coração de Leão e a Terceira Cruzada.”

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Crítica 720 páginas 26 euros
AS CRUZADAS – A GUERRA PELA TERRA SANTA Crítica 720 páginas 26 euros

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