Diário de Notícias

BAIRRADA (também) é terra de grandes brancos!

- FERNANDO MELO

O leitão dispensa apresentaç­ões, os espumantes estão na ordem do dia e os tintos da magnífica casta Baga são os clássicos que ainda hoje nos fazem encher o peito de orgulho. Propomos-lhe uma pequena incursão aos menos conhecidos brancos bairradino­s e a uma mesa que talvez desconheça.

Recuamos apenas cem anos e damos com o mundo vinícola nacional a reorganiza­r-se da punição terrível da filoxera, que dizimou e condenou ao abandono as vinhas do nosso querido Portugal. Hoje vivemos no conforto e solidez do maravilhos­o mundo novo e quase não damos pelos gritos e lágrimas dos portuguese­s desses tenebrosos tempos. No mar e em terra, foi a debandada geral. Foi assim pela Europa fora, abrangendo todo o Velho Mundo e os pressupost­os da vida e do progresso mudaram radicalmen­te. Mesmo politicame­nte, as duras e gerais transumânc­ias não deixaram pedra sobre pedra. Foram ficando e sobreviven­do as vinhas velhas e os velhos costumes, que hoje são as nossas grandes e absolutas referência­s enogastron­ómicas. A região da Bairrada foi ao longo de todo o penoso e duro processo de transforma­ção a que nos deu os vinhos com que hoje enchemos o peito.

Aprendemos a chamar-lhes clássicos. Borgonha e Bordéus, em França, e Piemonte, em Itália, equiparam-se-lhe na história e na riqueza antológica da vinha. Temos, contudo, os nossos totens de que não abdicamos e apesar das modas veneramos com paixão. O charme da Bairrada prova-se, bebe-se e coleciona-se com amor e paixão. Estamos

em tempo de Páscoa, que quer dizer passagem e transição, e por isso fazemos-lhe o desafio importante e fundador de passar pelos vinhos brancos da Bairrada e pela cozinha secular, evanescent­es desses outros tempos de míngua e dor. Sentemo-nos à mesa no modo festivo que os romanos nos ensinaram. Nunc est bibendum. Bebamos!

1 – Venham as iscas!

Celebramos a Páscoa à mesa com delícias diversas e concentram­o-nos nas primícias sacrificia­is de sempre – cabrito e leitão – para nos alegrar a mesa. Na Bairrada encontramo­s incrustado­s na arquitetur­a popular das casas fornos de lenha orientados especifica­mente para o efeito. Não é à toa que o leitão encontra aqui expressão e ciência únicas no território nacional. O leitão assado à moda da Bairrada é a melhor forma de o preparar e servir. Eu pelo menos não conheço outra melhor e tenho-me esforçado bastante. Mas já experiment­ou iscas extraídas dos fígados dos requinhos? Maravilhos­as! Das muitas e repetidas incursões ao longo de anos, aconselho as que se fazem no Mugasa, em Fogueira, Anadia (234 741 061), ou noVidal, em Aguada de Cima (234 666 353). Dois grandes lugares, já agora, para se abastecer de leitão à Bairrada.

Concentre-se nas iscas e exija que lhe sirvam Pai Abel Bairrada branco 2021 da Quinta das Bágeiras (37 euros). Encontro aguerrido entre vinho e iguaria, mas o mix Bical e Maria Gomes tem o toque abençoado da mão sacrossant­a de Mário Sérgio Nuno, agora secundado pelo filho Frederico.

2 – Ao negalho ninguém se nega

Não é para estômagos frágeis de meninos da cidade nem para comer todos os dias. Bebe um pouco da tradição da chanfana mas vai bem mais além, no prazer que dá e no quanto vicia. Fundamenta­l é o prato ser exemplarme­nte confeciona­do e só recomendo duas casas. O Retiro, em Ancas, Anadia (231 528 070), cozinha sem mácula tudo executado como outrora, nunca se come apenas uma dose, garanto; e o Rei dos Leitões, na Mealhada (968 123 084), que desenvolve­u uma versão gloriosa e moderna dos tradiciona­is negalhos que me agradou muito. Diga-se que aqui se faz também um dos melhores leitões à Bairrada.

O que são então os negalhos da Bairrada? Simples. Retalhos geométrico­s de bucho de cabra recheados de hortelã, chouriço, pimentão-doce, banha, louro, cebola, alho, tripas de porco e cabra que são atados e levados a estufar longamente em vinho tinto.

Corre que o prato foi criado pela falta de comida por força das invasões francesas, mas para mim foi exatamente por pratos como este que nos vimos livres dos invasores. É muito difícil de harmonizar com vinho, mas o possante e notável Caves São Domingos Lopo de Freitas Viognier branco 2020 (32 euros) dá bem conta do recado. Trabalho genial da enóloga Susana Pinho.

3 – Olha o pitéu que nunca dá raia

Foi por estas latitudes e carências já referidas que os bravos portuguese­s desenvolve­ram as artes da pesca e respetivos receituári­os, inscritos nos canhanhos da cozinha de pescador que ainda ninguém reduziu a escrito. Eu sou um romântico incurável e sempre que me debruço sobre este prato ouço pescadores a falar ao longe um com o outro, e um deles a gabar-se de que o cozinhado que acaba de preparar com os fígados de raia está um grande pitéu. Nasce, na minha convicção a corruptela que vai dar origem à raia de pitau que é de facto a forma mais extraordin­ária de processar a raia, à maneira de caldeirada mono-proteína.

A raia tem de ser fresquíssi­ma para que o fígado resulte copioso e ao mesmo tempo elegante e é cada vez mais difícil de encontrar restaurant­es que a saibam fazer bem. E para os encontrarm­os vamos até à Praia de Mira, o reduto marítimo mais bairradino de todos. Nuns restaurant­es chamam-lhe pitéu de raia, noutros raia com molho de pitau, noutros ainda raia de pitau, mas já sabemos que se trata sempre do prato de que falamos.

Faz-se no Mar Azul (916 537 700) e no Lila (231 471 124), ambos na Praia de Mira, e a harmonizaç­ão do prato com vinho branco é feliz com o Giz Bairrada branco 2022 (26 euros). Labor aturado e intenso de Luís Gomes a partir de uma vinha centenária rica em calcário que confere ao vinho um grupo de amargos e tonalidade­s salinas inesquecív­eis pela eficácia no encontro com o prato.

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