Diário de Notícias

Onde eu estava

Carlos Fino nasceu em Lisboa, em 1948. Foi correspond­ente da RTP em Bruxelas, Washington e Moscovo.

- Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

Não tinha 25 anos feitos quando cheguei a Moscovo. Para mim, ainda a mítica Moscovo, cidade que dava asilo a vários comunistas portuguese­s, entre eles a Álvaro Cunhal. De facto, obtive o visto por intercessã­o do Partido Comunista Português, de que era militante, circunstân­cia que levara a PIDE a intimidar-me, a ameaçar-me e determinar­a a minha fuga, a salto, do país. Primeiro para Paris, onde me esperavam uma águas-furtadas e banhos públicos; depois Bruxelas, onde pude prosseguir o meu curso de Direito enquanto conduzia elétricos pela cidade.

Estávamos em finais de novembro de 1973 quando aceito, na convicção de que o regime português estava ainda para durar por muito tempo, partir para a União Soviética, sabendo pelo partido que abrira uma vaga na Rádio Moscovo.

A cidade revelar-se-ia, em tudo, muito diferente do que esperava. Um desalento que o inverno russo e a difícil adaptação às condições locais só fizeram acentuar. Até o traçado urbano, marcado por longas avenidas descoberta­s, ajudava ao desconfort­o.

Vivia então com a minha namorada, Isabel, sobrinha de Alves Redol, escritor e antifascis­ta caro ao partido. A ponto de levar Álvaro Cunhal, com quem me cruzei algumas vezes na cidade, a fazer-me uma advertênci­a numa clara intromissã­o na minha vida pessoal. Não esqueço o dia em que ele nos visitou no nosso apartament­o, confrontan­do-me com a informação de que eu estaria a namorar uma rapariga russa, pondo assim em causa a relação com Isabel Redol. Atónito, reagi mal. E deixei claro que nada impediria o meu relacionam­ento com a mulher com quem me casei e formei família.

Foi neste contexto, e para surpresa de todos, que chegou o 25 de Abril. As notícias eram escassas e as comunicaçõ­es difíceis. Era ainda o tempo em que tínhamos de pedir às telefonist­as uma ligação internacio­nal, e ficar à espera, durante horas, sabendo que tudo iria ser escutado e gravado. No entusiasmo em que fiquei valeu-me um velho rádio militar russo meio esquecido e sem uso na redação África em língua portuguesa da Rádio Moscovo. O sinal era péssimo – só conseguia entender alguma coisa com o ouvido literalmen­te colado ao aparelho –, mas dava ainda assim para acompanhar as peripécias dos acontecime­ntos através da velha Emissora Nacional. Passava os dias, seguindo a par e passo, como podia, o que se passava em Portugal. A Junta Militar que tomou o poder e, sobretudo, o discurso recuado e ambíguo de Spínola em relação à guerra nas colónias não inspiravam grande confiança. Mas logo se percebeu que havia outra dinâmica em curso e que estávamos “apenas no início”.

Quis de imediato fazer as malas e regressar a Portugal. Na ausência, ainda, de Embaixada de Portugal em Moscovo, fiquei sem passaporte, bloqueado durante meses, impedido de partilhar da alegria da libertação para a qual, ainda que modestamen­te, tinha contribuíd­o através da luta do movimento estudantil, na Faculdade de Direito de Lisboa, e da ligação com o movimento operário, na região deVila Franca, onde residiam os meus pais. Esse período forçado na Rússia mudou todo o meu estado de alma e a minha vida para sempre. Quando finalmente pude regressar, em novembro de 1974, vinha desiludido e com a morte na alma. Mas essa é outra estória que não cabe aqui.

Aqui cabe apenas assinalar como vivi – graças à existência de um velho rádio e ainda que a milhares de quilómetro­s de distância – em consonânci­a com o meu país e o meu povo, um dos dias mais felizes da minha vida.

“O sinal era péssimo – só conseguia entender alguma coisa com o ouvido literalmen­te colado ao aparelho –, mas dava ainda assim para acompanhar as peripécias dos acontecime­ntos através da velha Emissora Nacional.”

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