Opinião Fernanda Câncio
nascido em 1957, nunca reparou que até 1974 as mulheres não tinham em Portugal universalmente direito de voto; eram impedidas de aceder a certas profissões, como a da magistratura; obrigadas pelo Código Civil, se casadas, a encarar como “chefe da família” o marido, que podia por exemplo abrir-lhes a correspondência, impedi-las de desempenhar determinados trabalhos e decidir, sem que elas pudessem opor-se, sobre a educação dos filhos (elas tinham apenas o direito de “ser ouvidas”).
As mulheres poderiam também ver o casamento legalmente anulado caso o noivo denunciasse a respetiva ausência de virgindade. E havia ainda aquela disposição magnífica do Código Penal que penalizava com apenas “seis meses de desterro da comarca” o marido que matasse a mulher adúltera ou, se “desonradas”, as filhas até aos 21 anos que vivessem sob o seu “pátrio poder” (faz lembrar uma coisa a que se dá o nome de “crimes de honra”, que se associa geralmente a países muçulmanos, não faz?).
Já o que não havia em lado nenhum do mesmo Código Penal era um crime denominado “violência doméstica” - foi preciso esperar até aos anos noventa do século passado para que essa realidade escondida assumisse a forma de tipo criminal, e pudéssemos começar a ter uma ideia do quão tradicional, ou seja comum e aceite, era essa violência.
Sim, houve em Portugal, até há 50 anos - ontem - um conceito de família que não só era reputada de única possível, porque única codificada em termos legais (até havia o conceito legal de “filhos ilegítimos”), como objeto de cuidada evangelização na escola, onde os livros desde a primária deixavam muito claro que papéis estavam destinados às mulheres e aos homens. Chama-se a isso “papéis de género” - o que podemos denominar, com inteira justeza, de “ideologia de género”. Uma ideologia que determina que consoante o género, temos de ser uma coisa ou outra. Não temos a liberdade de decidir, porque foi superiormente (divinamente até) determinado.
O que, como resulta evidente das citações que o Expresso divulgou, está em causa no livro apresentado por Passos é a ideia de que quem se rebela contra essa ideia de determinação de papéis específicos consoante se nasceu menina ou menino, e contra a realidade de um conceito de família baseado nessa determinação - ou seja, quem se rebela contra a desigualdade entre mulheres e homens -, “quer destruir a família”. É essa e há muito a posição da Igreja Católica, da qual aliás surgiu, em reação contra a 4ª Conferência Mundial sobre a Mulher (Pequim, 1995) e contra a respetiva proclamação da necessidade de incrementar em todo o mundo a igualdade das mulheres face aos homens, a expressão “ideologia de género”. Mais concretamente: a Igreja Católica considera a igualdade uma ideologia perniciosa e destrutiva - uma ideologia contra a sua (dela Igreja) ideologia.
Ora quem defende que a igualdade entre mulheres e homens - a igualdade entre pessoas, o reconhecimento de que todos têm direitos iguais - “destrói a família” é quem padece do pensamento de uma família única, a única que considera aceitável. Uma caricatura de família, a que Passos Coelho chamou “idealização”, dando como contraponto a “familia monoparental”: “Sou hoje um pai solteiro, não por escolha [é viúvo]. Há muitas mães e pais solteiros mas dificilmente isso corresponde em média àquilo a que chamamos a uma idealização do conceito de família”.
Para quem lamenta “hiper-simplificações feitas com o objetivo de agredir” não está mal: famílias constituídas por um adulto e crianças são menos boas, coitadinhas. Menos “ideais”. Até por isso lá no livro se lamenta a “simplificação do divórcio”: quando dois adultos não são felizes juntos deve-se por lei dificultar que se separem. É melhor, acham os autores, e pelos vistos acha Passos. É melhor serem Passos e os autores do livro a decidir, ditar, estabelecer, o que é bom para os outros, para as famílias dos outros. Porque, lá está, se esses outros quiserem decidir sobre a sua família, organizá-la e vivê-la como acharem melhor, lá nas suas casas, é porque querem “destruir a família”. Não é por quererem ser felizes e fazer outras pessoas felizes; não é porque consideram ter o direito de amar como amam, cuidar como cuidam, e chamar família a quem veem, sentem como família. Não: isso incomoda estes senhores, enerva-os, põe-lhes em causa a identidade. Porque se não mandarem nos outros, se não puderem limitar a liberdade dos outros, decidir o que é certo e errado no amor, se não puderem impedir, diminuir, destruir – simbólica ou realmente – as famílias dos outros, quem são eles?