Elettra Stamboulis “Zodíaco é um livro bastante singular”
A escritora e o seu parceiro, o ilustrador Gianluca Costantini, ambos italianos, criaram com Ai Weiwei uma original solução gráfica, através dos símbolos do zodíaco chinês, para contar as memórias do artista.
Numa entrevista, Ai Weiwei disse que este livro nasceu graças às redes sociais, porque é onde o artista é muito ativo e disponibiliza muita informação. Como é que a Elettra e o Gianluca Costantini entraram na equação?
O Gianluca estava em contacto com AiWeiwei desde 2017, porque seguia as suas campanhas sobre os migrantes em Lesbos. Foi nessa altura que começou a desenhá-lo pela primeira vez. Quando o artista chinês inaugurou a sua exposição em Florença, no Palazzo Strozzi, foi uma oportunidade para nos conhecermos. Eu também fui, porque o Gianluca não fala inglês. Costantini tinha preparado um retrato do pai de AiWeiwei como presente: isso impressionou muito Ai Weiwei, que perguntou o que queríamos fazer com ele. E eu disse: “A única coisa que fazemos bem, uma banda desenhada.” Ao que respondeu: “Ah, interessante.” Passado um ano, chamou-nos a Berlim para falarmos sobre o assunto e fazermos uma proposta concreta. Foi aí que, na realidade, a ideia nasceu.Trabalhámos diretamente por conta dele.
A ideia de contar as memórias do artista através dos animais do zodíaco chinês foi sua? Exatamente. Foi graças a uma fotografia que tirámos à saída do estúdio, em Berlim, por baixo de uma obra sua dedicada ao zodíaco. Quando concebo uma BD, é muito importante, para mim, ter uma estrutura criativa: trabalho um pouco na linha do OuLiPo [grupo literário experimental] ou de Italo Calvino. A minha escrita tem de obedecer a uma regra rígida. Neste caso, 12 signos, 12 páginas por capítulo, era esse o limite. Além disso, o tema do zodíaco está muito presente numa série de obras de AiWeiwei e apercebi-me de que é também um aspeto peculiar da cultura popular chinesa. O próprio artista perguntou a Gianluca, ao sair do estúdio, qual era o seu signo chinês. Nesse momento, apercebi-me de que se trata de um elemento que, de alguma forma, atravessa os relacionamentos: quase nunca perguntamos o signo do zodíaco numa reunião de negócios, por mais amigáveis e familiares que sejamos. Apesar da dureza da infância de Ai Weiwei ou dos maus-tratos que sofreu em adulto pelo regime chinês, o tom geral é poético e terno. Era esse o objetivo?
A poesia é outro elemento-chave da poética de Ai Weiwei: o facto de Ai Qing, o pai do artista, ser um dos poetas mais importantes da República Popular da China – e muito mais famoso do que o filho – é um aspeto crucial da vida do artista, mas também do seu horizonte. Ai Qing tornou-se poeta porque não podia ser artista na prisão: de certa forma, as escolhas posteriores de dois dos seus filhos (um irmão do lado do pai que aparece no livro é também pintor) completam a sua biografia, quase como uma compensação. Creio que para dizer coisas importantes não é preciso mostrar crueldade, muito pelo contrário. Estamos viciados em cenas de violência narrativa e hiperviolência, mas estas apenas nos anestesiam.
A técnica de ilustração utilizada em Zodíaco representa uma rutura com os vossos trabalhos anteriores. Porquê esta solução gráfica? Gianluca afinou o seu estilo em contacto direto com AiWeiwei, que pretendia um traço que ecoasse um estilo gráfico típico de uma certa BD chinesa, em particular de HeYouzhi. O trabalho de preparação estilística era uma condição prévia, porque este livro é uma obra de um artista criada em colaboração com duas outras pessoas, um artista e uma escritora, que interpretaram os seus pedidos e expectativas num diálogo estreito. Neste sentido, penso que é um livro bastante singular: ao contrário de outros livros de banda desenhada“sobre” artistas, é o trabalho de um artista concetual. Gianluca tem esta característica em geral, de nunca repetir um estilo gráfico: não é maneirista, mas a sua linha serve a história. A sua linha, o seu estilo gráfico é um aspeto semântico e adapta-se ao que se quer contar.
A parceria com Costantini começou ao criarem o Festival
Komikazen, de BD de não-ficção e, desde então, dedicaram livros a acontecimentos históricos ou a memórias de personalidades como Gramsci, Pasolini ou Berlinguer. Porquê esta escolha? Será a realidade mais relevante do que a ficção?
O Gianluca e eu começámos a trabalhar juntos muito antes de vivermos juntos, como um casal de curadores: o que nos interessava era mostrar aspetos invisíveis, experiências artísticas underground . Em dezembro de 2000, fui a Israel e à Palestina com um grupo de ativistas feministas. Quando regressei, li Palestina: Uma Nação Ocupada, de Joe Sacco, onde apareciam muitas das pessoas que tinha conhecido na viagem. Para nós, essa era a história escondida que tinha de ser mostrada, por isso organizámos a nossa primeira exposição de BD, que foi um enorme e inesperado sucesso, tendo também viajado para muitos países europeus. E começou esta viagem, que é feita de muitas paragens. Uma importante, em 2006, também em Lisboa [Banda Desenhada Política, na Bedeteca]. Não creio que a realidade seja mais relevante do que a ficção, até porque quando narramos há sempre um elemento de recriação, de distorção, de distanciamento, até de traição. O próprio desenho é uma arte que subtrai, não acrescenta. Precisamos da História real para dizer o que queremos dizer, para entregar a nossa mensagem numa garrafa. Zodíaco, por exemplo, é baseado na vida de AiWeiwei, mas no que nós três estávamos interessados em transmitir ao leitor é o amor pela arte como ferramenta de mudança e o valor da liberdade de pensamento. Para ser franca, no início o artista estava cético quanto a colocar a sua biografia no centro das atenções. Mas depois convenceu-se de que poderia ser um elemento útil para a narrativa. É preciso dizer que só li a sua autobiografia depois de terminar Zodíaco, isto também foi um ato de um artista concetual...