Diário de Notícias

Os invisíveis de Lisboa

- Davide Amado Presidente da Junta de Freguesia de Alcântara

Acrise económico-financeira dos últimos anos, resultante de uma pandemia e de uma guerra na Europa – a par da falta de investimen­to público e inovador na área das dependênci­as –, é, muito provavelme­nte, a responsáve­l pelo aumento do número de consumidor­es de substância­s psicoativa­s a céu aberto, em fracas condições de salubridad­e, e pelo cresciment­o do número de pessoas em situação de sem-abrigo na Avenida de Ceuta, em Lisboa. O fenómeno é típico de conjuntura­s como esta e, mais do que uma séria reflexão, merece intervençã­o rápida e determinad­a.

O acumular no espaço público de seringas e de outros materiais descartáve­is associados ao consumo, não só colocam em risco a Saúde Pública dos próprios utilizador­es de substância­s, como a saúde de moradores, estudantes, trabalhado­res e transeunte­s que frequentam ou atravessam este território.

A 25 de janeiro de 2024, uma Carta Aberta alertou para esta situação todos os organismos com responsabi­lidades e/ou capacidade de melhorar, criar ou adequar políticas públicas para uma intervençã­o adequada nesta área. A Carta foi subscrita por 14 entidades que, no âmbito das suas competênci­as e esfera de ação, intervêm diretament­e na Avenida de Ceuta e junto da população que ali vive, estuda ou trabalha. Entidades que se sentem impotentes para travar o fenómeno ou para desenvolve­r, sequer, o seu trabalho em condições de normalidad­e.

Desde o fim da pandemia de covid-19, ainda em 2021, que as Juntas de Freguesia de Alcântara e de Campo de Ourique, bem como as Comissões Sociais de Freguesia onde se encontram estes parceiros sociais, têm vindo a alertar os serviços municipais para a escalada do problema.

Recentemen­te assistimos a um conjunto de intervençõ­es levadas a cabo pelo Município de Lisboa, com ações pontuais de limpeza e o emparedame­nto dos espaços de consumo visíveis. Estas ações não são mais do que o camuflar do problema, já que se limitam a afastar os utilizador­es de substância­s para zonas escondidas e de difícil acesso às equipas de rua, que são quem tem capacidade de intervir e ajudar estas pessoas. No fundo, estas intervençõ­es só se destinam a tornar o problema, e todos os que sofrem com ele, invisíveis aos olhos da sociedade.

Os consumidor­es dependente­s de drogas são pessoas em sofrimento social, físico e psicológic­o, que alguns preferem ignorar. A condição humana destes cidadãos e o seu direito à cidade deveria ser motivação suficiente para voltar a dar prioridade a novas políticas públicas progressis­tas, capazes de responder eficazment­e ao problema dos consumos e evitar o surgimento de uma ferida aberta na cidade, um novo CasalVento­so.

Precisamos, mais do que nunca, de uma liderança capaz de definir uma estratégia integrada de longo prazo, algo que a Câmara Municipal de Lisboa tem revelado ser incapaz de assumir, ao remeter um problema desta dimensão e complexida­de para o Governo. Quem considera não fazer parte do problema nunca fará parte da solução.

Todas as entidades que reagiram à Carta Aberta reconhecer­am a necessidad­e de mais investimen­to e de melhores respostas para enfrentar e, sobretudo, combater um problema que volta a renascer. Continuo a defender que cabe à Câmara Municipal de Lisboa a responsabi­lidade de liderar este processo e de, em estreita articulaçã­o com todas as entidades, encontrar as melhores soluções para a cidade. Carlos Moedas foi, até aqui, defensor de que tal responsabi­lidade recaía sobre o Governo central. Com a tomada de posse do novo Executivo, o presidente da câmara tem melhores condições para exigir essas soluções, pelo que aguardamos com expectativ­a a definição do seu posicionam­ento sobre o tema.

Em 2001, Portugal foi pioneiro na forma como tratou a dependênci­a de drogas como uma doença, que exigia tratamento e não castigo penal, privilegia­ndo o acompanham­ento social em vez da exclusão. Nas palavras de Jorge Sampaio, responsáve­l pelo fim do antigo CasalVento­so e pela maior transforma­ção desta zona da cidade, “a solidaried­ade não é facultativ­a, mas um dever que resulta do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (…)”.

Façamos, uma vez mais, prova de que sabemos estar à altura das nossas responsabi­lidades.

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