Os invisíveis de Lisboa
Acrise económico-financeira dos últimos anos, resultante de uma pandemia e de uma guerra na Europa – a par da falta de investimento público e inovador na área das dependências –, é, muito provavelmente, a responsável pelo aumento do número de consumidores de substâncias psicoativas a céu aberto, em fracas condições de salubridade, e pelo crescimento do número de pessoas em situação de sem-abrigo na Avenida de Ceuta, em Lisboa. O fenómeno é típico de conjunturas como esta e, mais do que uma séria reflexão, merece intervenção rápida e determinada.
O acumular no espaço público de seringas e de outros materiais descartáveis associados ao consumo, não só colocam em risco a Saúde Pública dos próprios utilizadores de substâncias, como a saúde de moradores, estudantes, trabalhadores e transeuntes que frequentam ou atravessam este território.
A 25 de janeiro de 2024, uma Carta Aberta alertou para esta situação todos os organismos com responsabilidades e/ou capacidade de melhorar, criar ou adequar políticas públicas para uma intervenção adequada nesta área. A Carta foi subscrita por 14 entidades que, no âmbito das suas competências e esfera de ação, intervêm diretamente na Avenida de Ceuta e junto da população que ali vive, estuda ou trabalha. Entidades que se sentem impotentes para travar o fenómeno ou para desenvolver, sequer, o seu trabalho em condições de normalidade.
Desde o fim da pandemia de covid-19, ainda em 2021, que as Juntas de Freguesia de Alcântara e de Campo de Ourique, bem como as Comissões Sociais de Freguesia onde se encontram estes parceiros sociais, têm vindo a alertar os serviços municipais para a escalada do problema.
Recentemente assistimos a um conjunto de intervenções levadas a cabo pelo Município de Lisboa, com ações pontuais de limpeza e o emparedamento dos espaços de consumo visíveis. Estas ações não são mais do que o camuflar do problema, já que se limitam a afastar os utilizadores de substâncias para zonas escondidas e de difícil acesso às equipas de rua, que são quem tem capacidade de intervir e ajudar estas pessoas. No fundo, estas intervenções só se destinam a tornar o problema, e todos os que sofrem com ele, invisíveis aos olhos da sociedade.
Os consumidores dependentes de drogas são pessoas em sofrimento social, físico e psicológico, que alguns preferem ignorar. A condição humana destes cidadãos e o seu direito à cidade deveria ser motivação suficiente para voltar a dar prioridade a novas políticas públicas progressistas, capazes de responder eficazmente ao problema dos consumos e evitar o surgimento de uma ferida aberta na cidade, um novo CasalVentoso.
Precisamos, mais do que nunca, de uma liderança capaz de definir uma estratégia integrada de longo prazo, algo que a Câmara Municipal de Lisboa tem revelado ser incapaz de assumir, ao remeter um problema desta dimensão e complexidade para o Governo. Quem considera não fazer parte do problema nunca fará parte da solução.
Todas as entidades que reagiram à Carta Aberta reconheceram a necessidade de mais investimento e de melhores respostas para enfrentar e, sobretudo, combater um problema que volta a renascer. Continuo a defender que cabe à Câmara Municipal de Lisboa a responsabilidade de liderar este processo e de, em estreita articulação com todas as entidades, encontrar as melhores soluções para a cidade. Carlos Moedas foi, até aqui, defensor de que tal responsabilidade recaía sobre o Governo central. Com a tomada de posse do novo Executivo, o presidente da câmara tem melhores condições para exigir essas soluções, pelo que aguardamos com expectativa a definição do seu posicionamento sobre o tema.
Em 2001, Portugal foi pioneiro na forma como tratou a dependência de drogas como uma doença, que exigia tratamento e não castigo penal, privilegiando o acompanhamento social em vez da exclusão. Nas palavras de Jorge Sampaio, responsável pelo fim do antigo CasalVentoso e pela maior transformação desta zona da cidade, “a solidariedade não é facultativa, mas um dever que resulta do artigo 1.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (…)”.
Façamos, uma vez mais, prova de que sabemos estar à altura das nossas responsabilidades.