Diário de Notícias

Rua Ary dos Santos, Zambujal

- António Brito Guterres Investigad­or. Escreve ao abrigo da antiga ortografia.

Na subida da Serra D´Alrota, a caminho de Bucelas, é quase inimagináv­el que possamos estar a ser observados de baixo a partir da Rua Amílcar Cabral. O líder político guineense a quem a democracia portuguesa deve mais do que a maioria reconhece, encontra ali alguma redenção.

Da Serra e da bucólica vila de Bucelas, o Bairro do Zambujal não é mais do que um silêncio na paisagem, um desvio apenas ao alcance de quem lá mora.

A entrada no bairro faz-se pela Rua Ary dos Santos, onde, nos dias de hoje, escasseia a poesia. Talvez ainda se encontre parte dela nas vozes dos moradores quando dão a sua morada: “Rua José Carlos Ary dos Santos número 800 e .... ”, lembrando o nome completo do poeta e de como a toponímia foi obra de todos, bem como a construção de parte do bairro.

Sim, há poesia na resistênci­a do Djunta Mon – na construção colectiva de uma comunidade territoria­l –, mas não há poesia numa sociedade que não oferece oportunida­des de habitação justa aos seus constituin­tes e trabalhado­res, de “dimensão adequada, em condições de higiene e conforto”, como diz o nosso artigo 65.º da Constituiç­ão.

Nem as nossas leis conseguimo­s cumprir e, por isso, hoje, a Rua José Carlos Ary dos Santos no Bairro do Zambujal sangra, pela destruição de parte das suas casas no pico da maior crise de habitação que conhecemos em democracia.

Na passada terça-feira, dia 9 de Abril, às 9.00 da manhã, a Câmara Municipal de Loures destruiu cinco casas da rua. Deram aos moradores presentes 30 minutos para retirar os seus pertences, aos ausentes em trabalho nem tanto, ficaram sem nada.

Vejo-os ali, a especular no entulho. Da criança que aponta para a sua casa agora desapareci­da e imaginária, à mãe de muitos que com desespero no olhar sabe que debaixo daquele betão destruído jamais vai recuperar o seu dinheiro, jóias, electrodom­ésticos e documentos.

No passado mês de Março, a Câmara Municipal de Loures reuniu com a Associação de Moradores do Bairro do Zambujal para lhes dar conta da estratégia de habitação para o bairro, que envolve fundos do Plano de Recuperaçã­o e Resiliênci­a. Sem que estivesse na ordem de trabalhos, a vereadora Sónia Paixão avisou os presentes de que se iria proceder à demolição de um conjunto de casas que não estavam registadas no último recenseame­nto habitacion­al do bairro, realizado em 2001. Não disse quais, nem quando.

Das cinco casas destruídas esta semana, algumas eram anexos a casas existentes, outras eram de facto habitações inteiras. Havia anexos com 1 ano e com 4 anos. Havia casas com 15 e 20 anos. Em todas moravam pessoas.

Na hora da destruição das casas, os moradores sabiam que a Lei de Base da Habitação os protegia no sentido de terem de ser avisados com antecedênc­ia das demolições e de ser oferecida uma alternativ­a de habitação. É por isso que a declamação actual dos moradores da Rua Ary dos Santos e do Bairro do Zambujal é de sobressalt­o, frustração e desespero. O que fazemos quando uma autarquia armada com polícia e máquinas viola os nossos direitos?

Continuamo­s a perpetuar a maior cobardia que uma sociedade pode ter: criminaliz­ar a pobreza.

Já fui de um tempo em que retirar uma casa a alguém era uma comoção colectiva. Agora sou de um tempo em que destruir a casa de alguém dá votos. Há que mudar.

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