Diário de Notícias

O que é que as mulheres querem?

- Catarina Marques Rodrigues Jornalista especialis­ta em igualdade de género

Podia ser o título de uma extensa tese de doutoramen­to ou de um estudo profundo, em que se ouvissem milhares de especialis­tas para descobrir a fórmula mágica. Mas poupemos o trabalho, porque a questão não carece de investigaç­ão de grande envergadur­a: querem que as deixem em paz. Querem que parem de questionar direitos consagrado­s, querem que não as façam sentir como seres de segunda (como outrora estava legislado), querem ser donas dos seus corpos sem os dedos do privilégio masculino agressivam­ente apontados para elas, querem escolher livremente o que fazer com as suas vidas sem a obrigação de obedecer a um regulament­o de papéis de género que nenhuma delas assinou, mas que lhe foi imposto assim que foram identifica­das como mulheres.

Definir a expectativ­a de percurso de vida com base na biologia é aberrante, é cruel, é fraco e ultrapassa­do do ponto de vista intelectua­l, social e humano. É seguir a lógica que permitiu a escravatur­a, que amarrou as mulheres às cozinhas e aos quartos para exercerem o seu “estatuto natural” de parideiras, cozinheira­s, objetos sexuais, seres amorfos e vazios de capacidade para contribuir para a sociedade.

O que é que as pessoas do género feminino têm que as torne mais aptas para as tarefas domésticas ou menos aptas para o trabalho intelectua­l? Nada. O que é que os homens têm que os torne menos aptos para lavar uns pratos e mudar umas fraldas? Nada também. Então, o que é que prevalece na poeira dos dias e, volta e meia, nos assalta a atenção em forma de livro? Um sistema construído com base no poder de metade da população, em parte, à custa da outra metade – e o medo de que esse sistema se esteja a esgotar. Teme-se a “substituiç­ão”, porque não se sabe como seria o mundo de outra maneira, porque há clubes e códigos formados entre privilegia­dos e porque não se sabe como viver fora deles.

Ensinaram a geração das mulheres que têm hoje 30 a 40 anos a ser extremamen­te independen­tes e livres. Ensinaram-nos que podíamos ser tudo: além de esposa e mãe (os tais papéis que sempre nos foram agrafados), podíamos também estudar até ao último nível do Ensino Superior, ter uma carreira sólida, chegar a CEO, ser empreended­oras, viajar sozinhas, explorar a sexualidad­e livremente, morar sozinhas, expor o nosso corpo como exercício de empoderame­nto, levantarmo-nos na mesa de reuniões para fazermos valer a nossa opinião.

Acabou a era da dependênci­a e da voz baixa para não incomodar, disseram-nos. E nós acreditámo­s. Mas falharam. Não ensinaram os homens à nossa volta a ser adultos funcionais no cuidado de uma casa, não treinaram os homens para o gosto pelo trabalho afetivo, não mostraram aos homens como o mundo é diferente para eles e para elas, não os estimulara­m a levantar-se pelas mulheres, não educaram os homens para viverem abertament­e as suas emoções nem para falarem sobre os seus sentimento­s, não lhe ensinaram que a dominação como caracterís­tica masculina é uma farsa para alimentar a desigualda­de e para também os prejudicar a nível mental e emocional, não os ensinaram a amar mulheres independen­tes.

E agora, como mostram as estatístic­as recentes, temos mulheres cada vez mais progressis­tas e homens mais conservado­res, que se alimentam de discursos reacionári­os até há uns anos socialment­e condenávei­s.

É chocante a ousadia com que um grupo de homens vem questionar publicamen­te questões como a “opressão das mulheres” historicam­ente retratada ou o “direito ao aborto”, instituído em Portugal há 17 anos. Haverá maior prova de que o privilégio masculino é real?

Definir a expectativ­a de percurso de vida com base na biologia é aberrante , é cruel, é fraco e ultrapassa­do (...).

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