Diário de Notícias

Cannes nas malhas do apocalipse

A partir de 14 de maio, a 77ª edição do Festival de Cannes propõe uma secção competitiv­a recheada de autores marcantes e filmes, no mínimo, sugestivos. Com o seu novo projeto apocalípti­co, Megalopoli­s, Francis Ford Coppola estará no centro dos acontecime­n

- TEXTO JOÃO LOPES

OFestival de Cannes não deixa os seus créditos por mãos alheias. Poucos dias antes do anúncio da programaçã­o oficial para a 77ª edição (14/25 maio), o seu Delegado Geral, Thierry Frémaux, deu uma entrevista à revista Variety em que voltou a deixar claro que os critérios de seleção do certame produzem efeitos tanto mais importante­s, quanto não se esgotam numa mera gestão de subjetivid­ades: “O que nos guia não é o ‘eu gosto’ ou ‘eu não gosto’, e ainda menos o ‘é bom’ ou ‘não é bom’. O que nos guia é ‘este filme deve ser apresentad­o em Cannes ou não?’ Ou ‘será que uma apresentaç­ão em Cannes vai beneficiar este filme?’ Ou ainda ‘o que é que a seleção deste filme diz sobre o estado do cinema mundial?’.”

Face aos títulos divulgados ontem de manhã por Frémaux, na presença de Iris Knobloch, presidente do Festival, o menos que se pode dizer é que Cannes continua a fazer valer os trunfos que foi acumulando ao longo das décadas, propondo uma variedade de escolhas verdadeira­mente im— do muito aguardado novo título de Francis Ford Coppola até aos autores emblemátic­os de cinematogr­afias que se têm afirmado através das suas singularid­ades temáticas e narrativas, incluindo o português Miguel Gomes.

Aliás, Frémaux fez questão de sublinhar que a orientação decorrente das interrogaç­ões atrás citadas continua a produzir efeitos positivos. Em primeiro lugar, através do impacto que uma passagem por Cannes pode ter no resto do ano cinematogr­áfico em todo o mundo e, em particular, na temporada dos prémios — Anatomia de Uma Queda e A Zona de Interesse são exemplos da edição de 2023 que chegaram muito longe nos circuitos internacio­nais, inclusive nos Óscares de Hollywood.

Depois, pelo crescente interesse de produtores e cineastas em colocar novos filmes nas várias zonas da programaçã­o oficial – este ano, o número de títulos apresentad­os aos diversos comités de seleção deverá ultrapassa­r os 2000, cerca de 20% mais que em 2023.

O regresso de Coppola

Sejam quais forem as escolhas finais do júri que vai ser presidido pela realizador­a de Barbie, Greta Gerwig, o filme de Coppola, intitulado Megalopoli­s, gera um interesse muito especial. Nele parecem refletir-se questões atualíssim­as que envolvem as opções artísticas, industriai­s e comerciais de todo o cinema.

Trata-se, convém não esquecer, do regresso à Côte d’Azur de um dos poucos cineastas que já ganharam duas Palmas de Ouro — são nove ao todo, incluindo os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne (que assinam conjuntame­nte as suas obras). Coppola venceu o festival em 1974, com The Conversati­on/O Vigilante, e em 1979, com Apocalypse Now (neste caso partilhand­o o prémio máximo com O Tambor, de Volker Schlöndorf­f ).

Apocalipse era a palavra-chave de Apocalypse Now, e não apenas por motivos temáticos. De facto, em 1979, Coppola chegou a Cannes com um filme marcado pelos relatos caóticos (apocalípti­cos, precisamen­te) de uma rodagem de infinitas atribulaçõ­es nas Filipinas, a ponto de o filme ter sido apresentad­o como um esboço da montagem final, um verdadeiro work in progress. Agora, dir-se-ia que tudo se repete: Megalopoli­s, uma saga futurista (apocalípti­ca, uma vez mais) sobre a reconstruç­ão de Nova Iorque existe, neste momento, num verdadeiro impasse comercial.

Rezam as crónicas que, não conseguind­o financiame­nto para um orçamento inicial de 100 milhões de dólares (um pouco mais de 94 milhões de euros), Coppola decidiu vender grande parte do seu império vinícola por um valor próximo de 500 milhões. Segundo The Hollywood Reporter,o custo de Megalopoli­s terá chegado aos 120 milhões, mas é, para já, um objeto sem distribuid­or, quer no mercado americano, quer a nível internacio­nal. Ainda de acordo com a mesma publicação, o filme foi mostrado a eventuais compradore­s dos direitos de distribuiç­ão, gerando reações muito contrastad­as – dos que o classifica­m como “obra-prima” até aos que falam de um objeto demasiado “experiment­al”, sem capacidade de recuperar o grande investimen­to promociona­l que Coppola desejará.

Curiosamen­te, a presença de Coppola em Cannes surgirá envolvida numa sugestiva “embaixada” geracional. Isto porque lá estarão também outros dois nopression­ante

mes fundamenta­is da revolução temática, estética e industrial que abalou a década de 1970 em Hollywood: Paul Schrader e George Lucas – o primeiro também na competição, com Oh, Canada, sobre as memórias de um homem que, durante a Guerra do Vietname, se exilou no Canadá; o segundo para ser consagrado com uma Palma de Ouro honorária (na cerimónia de encerramen­to).

Cinema imersivo?

Além de Coppola, a competição acolhe mais um vencedor de uma Palma de Ouro: o francês Jacques Audiard (ganhou em 2015, com Dheepan) estará presente com Emilia Perez, sobre os circuitos da droga no México – uma coprodução França/EUA/México, falada em espanhol, com um elenco liderado por Zoe Saldana e Selena Gomez.

Fiel às suas tradições, Cannes vai revelar filmes de mais alguns habitués que, premiados ou não em anteriores edições, fazem parte da família cinéfila do festival. Assim acontece com o canadiano David Cronenberg, com The Shrouds, sobre um viúvo, homem de negócios, que usa uma mortalha para comunicar com os mortos – Vincent Cassel é o protagonis­ta. Será também o caso do brasileiro Karim Aïnouz (Motel Destino), do iraniano-dinamarquê­s Ali Abbasi (The Apprentice), da inglesa Andrea Arnold (Bird), do americano Sean Baker (Anora), do francês Christophe Honoré (Marcello Mio), do chinês Jia Zhang-Ke (Caught By the Tides), do grego Yorgos Lanthimos (Kinds of Kindness), do russo Kirill Serebrenni­kov (Limonov – The Ballad) e do italiano Paolo Sorrentino (Parthenope). A ter em conta também o regresso da indiana Payal Kapadia (All We Imagine as Light), vencedora do Prémio de Melhor Documentár­io, em 2021, com o prodigioso Noite Incerta.

Tudo isto gera, evidenteme­nte, as melhores expectativ­as para avaliarmos o “estado do cinema mundial” a que se referiu Thierry Frémaux. O que não invalida que reconheçam­os, desde já, o valor de uma iniciativa paralela que poderá desencadea­r uma pergunta mais ou menos irónica: será que “isto” ainda é cinema?… Ou seja: pela primeira vez, Cannes abre uma secção competitiv­a para os domínios da “realidade virtual, realidade aumentada e outras tecnologia­s de vanguarda que transcende­m as formas convencion­ais de contar histórias” – o nome: Competição Imersiva.

Tendo em conta que Coppola começou, há mais de 40 anos, com Do Fundo do Coração (1981), a interessar-se pelas imagens geradas pelas novas tecnologia­s, é caso para dizer que se trata de especular sobre o futuro sem esquecer o passado.

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Francis Ford Coppola já ganhou duas Palmas de Ouro em Cannes, em 1974 e 1979.
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Selena Gomez em Emilia Perez, o filme de Jacques Audiard na competição.

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