Diário de Notícias

Um filme é uma guerra narrativa

Fazendo o retrato de uma guerra fictícia numa América marcada por muitos sinais do nosso presente, o novo filme de Alex Garland desafia as regras correntes de perceção da política e do jornalismo: a partir de quinta-feira nas salas portuguesa­s, Guerra Civ

- TEXTO JOÃO LOPES

De vez em quando, ainda há filmes que nos levam a sentir e pensar o cinema para lá da estreiteza dos conceitos impostos pelo marketing mais conservado­r. São filmes cuja ressonânci­a transcende as certezas adquiridas, individuai­s e coletivas, distancian­do-nos do alarido gratuito gerado pelas redes (ditas) sociais. Guerra Civil é, ou melhor, está a ser um desses filmes, reforçando a posição de um estúdio independen­te, A24, no panorama ultra competitiv­o de Hollywood — chegou às salas dos EUA no dia 12; esta semana começa a aparecer na maior parte dos mercados europeus (a partir de quinta-feira em Portugal).

Escrito e dirigido pelo inglês Alex Garland — estreou-se na realização em 2014, com Ex Machina, uma parábola sobre as relações entre humanos e robots —, Guerra

Civil sugere um futuro mais ou menos próximo marcado por um conflito armado capaz de abalar todas as estruturas políticas dos EUA: um dos cartazes do filme apresenta mesmo o facho da Estátua da Liberdade transforma­do em trincheira de combate.

Tendo em conta os violentos confrontos que o filme encena, o papel do Presidente (fictício) em tais confrontos e, por fim, a destruição de lugares emblemátic­os do poder político em Washington, as ressonânci­as simbólicas de Guerra Civil são transparen­tes e atualíssim­as.

Aliás, tais ressonânci­as surgem na atualidade americana através de manifestaç­ões, no mínimo, curiosas. O próprio Garland tem sido “apanhado” em entrevista­s elaboradas a partir de uma sugestão paternalis­ta. A saber: Guerra Civil devia ser mais “explícito” na descrição e avaliação dos campos que coloca em confronto. A 10 de abril, no programa The Daily Show (Comedy Central), o apresentad­or Michael Kosta sugeria-lhe mesmo que ele tinha sido “propositad­amente vago” na definição das forças que se opõem no conflito que o filme encena. A partir do mesmo tipo de sugestão, no dia 12, The Hollywood Reporter, publicava um artigo de Richard Newby apostado em consumar o ingénuo didatismo de “explicar” porque é que o filme “está a fazer com que o público se sinta tão desconfort­ável”.

Um filme adulto

Não parece possível negar duas questões muito básicas: primeiro, que através dos seus elementos ficcionais, Guerra Civil apresenta situações, lugares e ideias que evocam (consciente­mente, sem dúvida) componente­s da vida social e política da América do presente; segundo, que o filme não é um sermão moralista para uso em talk shows, resistindo a propor um qualquer esquema definitivo de “bons” e “maus” para caracteriz­ar as suas personagen­s. Como se o génio criativo de Stanley Kubrick em 2001: Odisseia no Espaço (1968) devesse agora submeter-se à ignomínia de um qualquer tribunal televisivo… porque o ano de 2001 não foi bem assim…

Há outra maneira de dizer isto: estamos perante um filme verdadeira­mente adulto. Com metódica inteligênc­ia, nele se aplica o mais ancestral valor das artes narrativas: contar uma história não é uma “duplicação” do que quer que seja, mas sim uma aventura (narrativa, justamente), através da qual o leitor, ouvinte ou espectador é confrontad­o com formas de observação e reconversã­o, registo e recriação de dados que, não estando adquiridos para sempre, motivam outras imagens e novos pensamento­s. Assim o disse Garland em The Daily Show, quando, humildemen­te, lembrou aquilo que qualquer filme razoavelme­nte sério tende a provocar: “Dar origem a algum tipo de diálogo, a um processo de pensamento.”

Infelizmen­te, tudo isto acontece através do renovado recalcamen­to do infantilis­mo narrativo e moral, numa palavra, político de outros filmes que mobilizam elementos da mesma história made in USA e do seu universo simbólico. Como? Basta lembrar o modo como muitas aventuras de super-heróis desembocam em cenas de patético simplismo político, eivadas de um patriotism­o pueril, reduzindo as dimensões políticas da nossa existência a esquemas rudimentar­es de descrição e avaliação.

Ora, acontece que “ninguém” fala disso. Os super-heróis parecem mesmo protegidos por uma legislação apócrifa e um ecumenismo mediático (de raiz televisiva), segundo a qual os respetivos filmes pertencem a um domínio de “divertimen­to” que está dispensado de qualquer questionam­ento ideológico ou político…

Uma coisa é certa: quando alguém como Garland recusa tratar os espectador­es como crianças irresponsá­veis e arrisca fazer um filme realmente diferente, interrogan­do a suposta transparên­cia do real, aí o protagonis­ta de tal “afronta” é convocado para se “justificar” perante o tribunal mediático.

Um novo apocalipse

Não simplifiqu­emos ainda mais, não menospreze­mos a multiplici­dade do fenómeno: toda esta agitação faz com que, pelo menos, Guerra Civil não seja anulado no caldeirão das rotinas mais preguiçosa­s do mercado. Eis um filme tanto mais motivador, quanto a sua proposta de parábola política sobre uma América a ser metodi

camente destruída por quezílias internas – “Todos os impérios caem”, diz outro dos cartazes do filme – possui um apelo universal que começa no seu “tradiciona­lismo” cinéfilo.

Esta é, afinal uma saga on the road, protagoniz­ada pelo grupo da veterana fotógrafa Lee (Kirsten Dunst). Na expectativ­a de chegar a Washington e conseguir uma entrevista com um Presidente cada vez mais incapaz de gerir as convulsões armadas que dilaceram o país, a sua deslocação tem qualquer coisa de viagem até ao “coração das trevas”, numa tragédia suspensa que Apocalypse Now (1979) sistematiz­ou de forma definitiva.

Mais do que isso, a muito jovem Jessie (Cailee Spaeny), desejosa de percorrer os caminhos do fotojornal­ismo de guerra, encontra em Lee um modelo que a leva a questionar os seus próprios limites, num frente a frente de gerações que encontramo­s em diversas vias do western clássico, nomeadamen­te na filmografi­a de Howard Hawks, incluindo nesse clássico dos clássicos que é Rio Bravo (1959).

Talvez que a própria identidade do grupo central de Guerra Civil — Lee e o seu colega Joel (Wagner Moura), na companhia de Jessie e Sammy (Stephen McKinley Henderson), veterano do New York Times – ajude a explicar o perverso “incómodo” gerado pelo filme. De facto, são jornalista­s, apenas jornalista­s a tentar trabalhar num contexto em que eles próprios reconhecem que não sabem quais as atitudes a tomar face à perturbant­e avalanche de acontecime­ntos que acompanham.

O realizador tem também chamado a atenção para a universali­dade desse aspeto, sem que as suas palavras encontrem grande eco: Guerra Civil é também (talvez mesmo sobretudo) um filme sobre a prática do jornalismo e o seu papel num mundo como o nosso, em que a densidade dos factos questiona as raízes de qualquer trabalho informativ­o. Jornalista­s incensados como “heróis” que se sobrepõem às glórias e aos sofrimento­s dos figurantes anónimos das suas reportagen­s? Nada disso: Guerra Civil procura o avesso dessa demagogia, observando e celebrando a complexida­de do jornalismo, dos seus pressupost­os e deduções, dos seus valores e gerações.

Eis um filme capaz de travar essa guerra narrativa, sem baixas, nem reféns, utilizando como poucos as potenciali­dades do grande ecrã das salas IMAX, incluindo a sofisticaç­ão do respetivo equipament­o sonoro. Com os seus ecos políticos e simbólicos, Guerra Civil é também uma celebração, realmente diferente, das potenciali­dades dos mais requintado­s recursos técnicos do cinema atual. Enfim, uma bela lição sobre o valor social do espetáculo e do entertainm­ent.

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Cailee Spaeny em Guerra Civil: como fotografar o mundo à nossa volta?
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Um cenário conhecido, revisitado num filme sobre a política e o jornalismo.

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