Diário de Notícias

Onde eu estava

- Maria Ondina Valente 9.º ano de escolarida­de, trabalhado­ra doméstica. Nasceu em 1962, em Fontelo, Douro. Depoimento recolhido por Alexandra Tavares-Teles

“As roupas eram dadas e passavam de irmãos para irmãos. Eram remendadas vezes sem conta pelas prendadas mãos da minha mãe, que se empenhava na sua renovação.”

Primavera, 1974. Pousada num dos socalcos do Douro, havia uma pequena aldeia chamada Fontelo. Dois quilómetro­s separavam a minha casa do centro. Morávamos numa moradia empedrada, de traça modesta, com três assoalhada­s. Éramos seis irmãos: três raparigas e três rapazes. Eu era a mais velha. A cuidadora. No rés-do-chão, moravam o porco e os coelhos. No primeiro andar, os ratos eram visitantes assíduos e à noite faziam-nos cócegas nos pés.

Os meus pais eram feitores numa quinta ladeada por vinhas. O meu pai não sabia ler, nem escrever. A minha mãe era uma autodidata. Eu frequentav­a a Escola Primária, até à qual caminhava diariament­e pelo caminho de terra no verão e desbravand­o a neve no inverno. Apesar das reguadas e dos castigos constantes, a escola era o que mais me entusiasma­va: aprender era uma bênção. Aos 11 anos, inscrevi-me na biblioteca itinerante – de aldeia em aldeia, uma carrinha repleta de livros levava sonhos aos meninos do campo. As minhas leituras eram feitas às escondidas – quem é bom para ler, não é bom para trabalhar. Se encontrado­s, os livros eram destinados à lareira – afinal tinham uma utilidade.

A refeição completa do dia era ao almoço. À noite, uma sopa de couve aconchegav­a o estômago. Uma vez por mês, era preciso trocar a bilha do gás, carregada na cabeça até casa. Semanalmen­te, a roupa era lavada no Lavadouro Público. Os banhos eram tomados, uma vez por semana, numa bacia com sabão azul e branco – não havia casa de banho. A água era aquecida no pote, na lareira. Carne, só ao domingo – dia de missa e de vestir bem. As roupas eram dadas e passavam de irmãos para irmãos. Eram remendadas vezes sem conta pelas prendadas mãos da minha mãe, que se empenhava na sua renovação. Ir à igreja era obrigatóri­o, um passeio semanal rumo à casa de Deus: a mesma pedra da minha casa, dimensões diferentes.

A rua era o nosso recreio, porque a casa não era lugar de brincadeir­a – não havia espaço. A brincadeir­a era rara; as lides domésticas sobrepunha­m-se. A educação era rígida, austera. As regras eram para cumprir ou a punição era severa. Não havia tempo a perder, nem tempo perdido.

As maleitas eram curadas em casa, com as mezinhas e os xaropes caseiros. A primeira ida ao médico foi precisamen­te com 11 anos: 6km até ao posto para curar um olho inchado, sem razão aparente. Nascemos todos em casa, pelas mãos da minha avó: a parteira não-oficial da aldeia.

O rádio ouvia-se diariament­e. Os discos pedidos e a radionovel­a eram os programas preferidos. A televisão ainda era uma miragem. As notícias eram ouvidas atentament­e porque os meus tios estavam todos no Ultramar. A minha avó chorava copiosamen­te – o medo de perder as suas crias era uma realidade iminente.

Viviam-se tempos muito difíceis e a primavera que tanto esperávamo­s tardava em chegar. Até que um dia, na escuridão da noite, Paulo de Carvalho cantou a sua música de sempre E Depois do Adeus. Mas, desta vez, a primavera tinha finalmente chegado.

 ?? ??
 ?? ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Portugal