Ninguém conhece o Passos nesta estrada
No tema Retrato em Branco e Preto, Chico Buarque cantou, a propósito de uma separação, que “já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor”.
De outro cidadão lusófono, português, mais novo e que preferiu fazer carreira na política, apesar dos dotes vocais, conhecíamos de cor os seus silêncios, prolongados e frequentes desde que abandonara a liderança do PSD, após tornar-se o primeiro-ministro que não pôde continuar a sê-lo, mesmo sendo o mais votado pelos portugueses. Apenas uma das injustiças que ele pode apontar a um destino que lhe trouxe uma tragédia familiar que se desenrolou em paralelo com as agruras de uma governação em circunstâncias excruciantes.
Haverá neste momento muita gente acometida de uma incomensurável nostalgia por aquele tempo em que Passos Coelho, não obstante a voz de barítono que chegou a chamar a atenção do encenador de musicais Filipe La Féria, primava pelo silêncio. Aquele que abandonou na campanha eleitoral da Aliança Democrática, agitando um comício algarvio com uma associações de ordem alfabética entre imigração e insegurança, fazendo novamente soar a voz na apresentação do livro Identidade e Família, deixando a indicação de que o Governo de Luís Montenegro melhor faria em dialogar com um objeto partidário não-identificado que todos interpretaram ser o Chega.
E, como não há duas sem três, finalizou (até ver, pelo menos) com uma entrevista ao Observador destinada a fazer um ajuste de contas com o CDS e, em particular, com Paulo Portas, mais de uma década após o episódio da “demissão irrevogável” que marcou o último Governo de coligação PSD-CDS… antes daquele que acaba de entrar em funções.
Muitos daqueles que comentaram a entrevista a Maria João Avillez, mesmo que em off, resistindo à tentação de ignorar a violência das palavras do antigo primeiro-ministro, interrogaram-se sobretudo acerca de motivação de Passos Coelho. Mesmo a hipótese mais direta, que reside num ataque preventivo a Portas no âmbito de uma espécie de primárias do centro-direita para a sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa na Presidência da República, pareceu-lhes completamente descabida. Por vir demasiado cedo na linha do tempo das próximas eleições presidenciais. E por fazer alicerçar em 2013 aquilo que dirá respeito a 2026, por muito que a candidatura pareça compatível com as ambições de André Ventura, que terá apenas 53 anos mesmo que o próximo ocupante do Palácio de Belém cumpra os tradicionais dois mandatos.
Dentro do PSD haverá quem acredite que a finalidade das últimas declarações públicas de Passos Coelho, que na entrevista ao Observador foi levemente paternalista com Luís Montenegro, ao acusá-lo de se distanciar da herança – leia-se, o passismo – que o tornou plausível enquanto candidato à liderança, é uma tentativa de tomar conta do partido e incinerar o “Não é não” em relação ao Chega. Um cenário em que o CDS-PP e os seus dois deputados seriam perfeitamente dispensáveis se insistissem numa recusa intransigente de convergência à direita.
Uma e outra coisa poderão ser verdade, mas é justo admitir que ninguém conhece o Passos nesta estrada. Tirando o próprio, cujas ambições são ainda mais indecifrá-veis do que o capital político que mantém e as suas reais possibilidades de obstar a que continue a haver 23% do eleitorado português disposto a votar no Chega e na Iniciativa Liberal, inexistentes enquanto liderou o PSD e governou Portugal. Só ele poderá dizer com absoluta certeza quais são os seus objetivos.
Dito isto, uma nota: está por provar o que Passos Coelho terá a ganhar com um ajuste de contas que acarreta a consequência de apoucar ou mesmo enlamear o XIX Governo Constitucional, que liderou entre 2011 e 2015. E que terá sido, para muitos portugueses, o mais corajoso de todos. Embora para muitos outros passe pelo mais cruel neste meio século de regime democrático.