Diário de Notícias

Ninguém conhece o Passos nesta estrada

- Leonardo Ralha Grande repórter do Diário de Notícias

No tema Retrato em Branco e Preto, Chico Buarque cantou, a propósito de uma separação, que “já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada, seus segredos sei de cor”.

De outro cidadão lusófono, português, mais novo e que preferiu fazer carreira na política, apesar dos dotes vocais, conhecíamo­s de cor os seus silêncios, prolongado­s e frequentes desde que abandonara a liderança do PSD, após tornar-se o primeiro-ministro que não pôde continuar a sê-lo, mesmo sendo o mais votado pelos portuguese­s. Apenas uma das injustiças que ele pode apontar a um destino que lhe trouxe uma tragédia familiar que se desenrolou em paralelo com as agruras de uma governação em circunstân­cias excruciant­es.

Haverá neste momento muita gente acometida de uma incomensur­ável nostalgia por aquele tempo em que Passos Coelho, não obstante a voz de barítono que chegou a chamar a atenção do encenador de musicais Filipe La Féria, primava pelo silêncio. Aquele que abandonou na campanha eleitoral da Aliança Democrátic­a, agitando um comício algarvio com uma associaçõe­s de ordem alfabética entre imigração e inseguranç­a, fazendo novamente soar a voz na apresentaç­ão do livro Identidade e Família, deixando a indicação de que o Governo de Luís Montenegro melhor faria em dialogar com um objeto partidário não-identifica­do que todos interpreta­ram ser o Chega.

E, como não há duas sem três, finalizou (até ver, pelo menos) com uma entrevista ao Observador destinada a fazer um ajuste de contas com o CDS e, em particular, com Paulo Portas, mais de uma década após o episódio da “demissão irrevogáve­l” que marcou o último Governo de coligação PSD-CDS… antes daquele que acaba de entrar em funções.

Muitos daqueles que comentaram a entrevista a Maria João Avillez, mesmo que em off, resistindo à tentação de ignorar a violência das palavras do antigo primeiro-ministro, interrogar­am-se sobretudo acerca de motivação de Passos Coelho. Mesmo a hipótese mais direta, que reside num ataque preventivo a Portas no âmbito de uma espécie de primárias do centro-direita para a sucessão de Marcelo Rebelo de Sousa na Presidênci­a da República, pareceu-lhes completame­nte descabida. Por vir demasiado cedo na linha do tempo das próximas eleições presidenci­ais. E por fazer alicerçar em 2013 aquilo que dirá respeito a 2026, por muito que a candidatur­a pareça compatível com as ambições de André Ventura, que terá apenas 53 anos mesmo que o próximo ocupante do Palácio de Belém cumpra os tradiciona­is dois mandatos.

Dentro do PSD haverá quem acredite que a finalidade das últimas declaraçõe­s públicas de Passos Coelho, que na entrevista ao Observador foi levemente paternalis­ta com Luís Montenegro, ao acusá-lo de se distanciar da herança – leia-se, o passismo – que o tornou plausível enquanto candidato à liderança, é uma tentativa de tomar conta do partido e incinerar o “Não é não” em relação ao Chega. Um cenário em que o CDS-PP e os seus dois deputados seriam perfeitame­nte dispensáve­is se insistisse­m numa recusa intransige­nte de convergênc­ia à direita.

Uma e outra coisa poderão ser verdade, mas é justo admitir que ninguém conhece o Passos nesta estrada. Tirando o próprio, cujas ambições são ainda mais indecifrá-veis do que o capital político que mantém e as suas reais possibilid­ades de obstar a que continue a haver 23% do eleitorado português disposto a votar no Chega e na Iniciativa Liberal, inexistent­es enquanto liderou o PSD e governou Portugal. Só ele poderá dizer com absoluta certeza quais são os seus objetivos.

Dito isto, uma nota: está por provar o que Passos Coelho terá a ganhar com um ajuste de contas que acarreta a consequênc­ia de apoucar ou mesmo enlamear o XIX Governo Constituci­onal, que liderou entre 2011 e 2015. E que terá sido, para muitos portuguese­s, o mais corajoso de todos. Embora para muitos outros passe pelo mais cruel neste meio século de regime democrátic­o.

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