Onde eu estava
Adriano Jordão nasceu em 1946, em Angola. Com o Curso Superior do Conservatório Nacional de Lisboa, prosseguiu os estudos em Paris. É pianista.
Em julho de 1972 ganhei o 1.º Prémio no Concurso Internacional de Piano Debussy, na terra natal do compositor, Saint Germain-en-Laye, nos arredores de Paris. Com ingenuidade, pensei que este importante galardão e reconhecimento internacional me protegeriam de um serviço militar extraordinariamente exigente e pensado para a guerra em África.
E foi com esta convicção que em dezembro vim passar o Natal em Lisboa, acompanhado da minha mulher e da minha filha pequenina, pensando regressar a Paris, onde lecionava no Conservatório Europeu como assistente da grande pianista e pedagoga Yvonne Lefébure, no final das festas.
Que engano. Fui, já com 27 anos, imediatamente recrutado e enviado para a recruta em Mafra. Em janeiro de 1973 estava, portanto, na tropa.
Apesar de ter sido selecionado para os Comandos beneficiei, finalmente, do meu estatuto de pianista laureado, e também da minha formação jurídica. Fui colocado no Ministério do Exército, de onde posteriormente me transferiram, primeiro, para o Quartel-General da Região Militar de Lisboa e, depois, para o COPCON.
Foi, assim, como Oficial do Exército que acompanhei por dentro o processo político que
“Fui mesmo contactado para, pasme-se, envenenar Otelo, o meu chefe direto no quartel-general. Recusei, evidentemente”.
antecedeu o 25 de Abril, desde a declaração unilateral de independência da Guiné-Bissau, em setembro 1973, ao desenvolver do Movimento dos Capitães, desde o fracassado Golpe das Caldas aos sucessivos pedidos de demissão do Presidente do Conselho, desde a triste Brigada do Reumático às negociações com a Guiné, em Londres.
No dia 25, apresentei-me normalmente ao serviço (entrava de Oficial de Dia, responsável pela Messe) tendo deparado de madrugada com o enorme aparato militar que ocupava o Quartel-General, onde eu estava colocado.
Mal cheguei, recebi de imediato ordem de prisão, uma vez que o Quartel tinha sido tomado pelo BC5 e eu fazia parte da guarnição. Perguntei ao Oficial responsável – creio que era o Major Fontão – por que razão me prendia, se nem sequer sabia se eu aderia, ou não, à Revolução.
“Adere?”, perguntou-me, apanhado de surpresa. Coloquei-lhe então a questão essencial, ou seja, quem estava por detrás do Movimento – se o General Spínola, se o General Kaúlza de Arriaga. “Não faço a menor ideia! Sou oficial do Exército e recebi ordens para ocupar o Quartel-General, o que fiz com todo o profissionalismo!” Mesmo nesta ignorância, aderi à Revolução e fui rapidamente para a Praça da Ribeira tratar do almoço desse dia.
Esta ocupação recorda-me a grande Joan Sutherland. A diva australiana tinha cantado, com Alfredo Kraus, justamente na noite de 24 de abril no Coliseu, uma memorável Traviata. Porque entrava muito cedo de serviço no dia 25, não pude assistir, com imensa pena minha, a essa extraordinária récita. Isso mesmo comentei com o então Embaixador da Austrália, um simpaticíssimo melómano, que me relatou então a curiosa reação de DameJoan nessa noite histórica.
No último intervalo, cerca das 11.00 horas da noite, os serviços da Embaixada informam-no de que estavam a decorrer manobras militares e que talvez fosse mais prudente levar a grande figura da lírica mundial para a residência do Embaixador. Porém, já pelas 03.00 horas da manhã de 25, Joan Sutherland insiste em regressar ao Hotel Ritz, na completa ignorância do que de facto se estava a passar. Saídos do Restelo cruzam-se, já perto do Ritz, com os carros de combate do BC5 que se dirigem para São Sebastião da Pedreira.
Vendo tantos militares Sutherland comenta: “All this for me.!!!”. Diva é diva.
Para mim, seguir-se-iam experiências incríveis. Fui mesmo contactado para, pasme-se, envenenar Otelo, o meu chefe direto no quartel-general.
Recusei, evidentemente com indignação. Mas deixo essa e outras histórias para uma outra oportunidade.