Diário de Notícias

Greta Garbo: ela só queria que a deixassem em paz

Por ocasião dos 100 anos da MGM, evocamos uma das suas maiores estrelas, senão a maior. Greta Garbo nunca trabalhou com outro estúdio, e foi nessa casa que a sua mitologia se construiu.

- TEXTO INÊS N. LOURENÇO

Na data do centenário da Metro Goldwyn Mayer, recordar Greta Garbo (1905-1990) não significa apenas trazer à memória uma figura lendária de um dos grandes estúdios do cinema americano. Na verdade, tentando desmontar um pouco essa ideia simples associada ao glamour das estrelas, Garbo simboliza toda a dinâmica do sistema no qual assentou a era de ouro de Hollywood.

A sua história permite aceder a uma certa lógica distante, essencial para se olhar a evolução dos tempos: se hoje em dia há atrizes a acumularem créditos de produtoras executivas nos filmes que protagoniz­am, nem sempre foi assim... Eis-nos então aqui diante da sueca que encantou um planeta inteiro, cultivou o mistério e trabalhou o mito da sua própria solidão, de filme para filme, tendo feito tudo isso no interior de um só estúdio – aquele com o logótipo do leão. Um lugar onde, enquanto movie star, alcançou algum poder de decisão, à medida do cresciment­o do estrelato, mas também um lugar que ditou o seu efémero percurso.

De Gösta Berling a Ninotchka

Desde a fundação da MGM, Louis B. Mayer percebeu que, criando as suas próprias estrelas, poderia ter mais controlo sobre elas, sobre as suas carreiras. E sem perder tempo, em 1924, na primeira de várias viagens à Europa, com o desígnio de caçar novos talentos, pode dizer-se, grosso modo, que “avistou” o de Greta Garbo numa sessão em Berlim do filme sueco A Lenda de Gösta Berling, de Mauritz Stiller (realizador que contratou logo de seguida, tendo já apreciado dois filmes seus).

A dúvida que faz parte da lenda em torno desta descoberta é a seguinte: Mayer terá contratado Garbo a pedido do próprio Stiller, ou identifico­u as virtudes da atriz nesse primeiro contacto com o seu rosto na grande tela?

A versão oficial dos estúdios aponta para o cenário mais adequado à mitologia, segundo o qual o produtor reconheceu o valor da estrela feminina desde o início, apenas mostrando algum desagrado com a não-correspond­ência da sua silhueta aos padrões americanos. O que fez com que a atriz de apenas 19 anos se visse obrigada a perder peso antes da viagem para América em 1925... Sina de quase todas as jovens atrizes à época, que não imaginavam os custos da ditadura da “eterna” juventude e beleza.

O primeiro filme que fez em Hollywood, A Torrente (1926), de Monta Bell, onde interpreta uma rapariga pobre que se transforma em diva da ópera, foi o seu passaporte definitivo: até ao fim da carreira, que não se revelou muito longa (deixou o cinema aos 36 anos), Garbo só trabalhou para a MGM. É, por isso, o exemplo imaculado de um sistema rígido. Um sistema que não servira a Mauritz Stiller, o verdadeiro responsáve­l pela descoberta da atriz (a quem aconselhou a mudança do nome Greta Lovisa Gustafsson para Garbo), e se viu fora dos estúdios logo à primeira tentativa de a dirigir nesse contexto, num filme chamado A Tentadora (1926). Acabou por ir bater à porta da Paramount e seguir o seu próprio caminho.

Desta fase inicial, o título que consolida a popularida­de de Garbo será o magnífico O Demónio e a Carne (1926), de Clarence Brown, obra responsáve­l por reuni-la com John Gilbert, ator que se tornou o seu par romântico por excelência, no ecrã e fora dele, prolongand­o-se a chama dessa paixão em Anna Karenina (1927), A Woman of Affairs (1928) e Rainha Cristina (1933); este último outra pérola preciosa do percurso de Garbo, sob a direção de Rouben Mamoulian, que filmou o seu rosto soberbamen­te desenhado para a eternidade, na pele da monarca sueca com laivos queer...

Em rigor, Rainha Cristina já não se constitui como uma das provas em película do amor com Gilbert, dado que terminaram a relação em 1929. Mas nada pode apagar o fenómeno mediático do referido romance, que até deu azo à expressão “Garbo-Gilberting” (inventada pelo colunista Walter Winchell), para designar o comportame­nto exibicioni­sta de qualquer par de amantes. Voilà!

Por falar em expressões inventadas a partir do nome da atriz, talvez a mais conhecida seja o “Garbo talks!” (“Garbo fala!”), slogan que a MGM criou a propósito do seu primeiro filme falado, Anna Christie (1930), mais uma vez com assinatura de Clarence Brown, um dos principais realizador­es dos estúdios, e da própria estrela escandinav­a.

Nesse ano foi nomeada para dois Óscares de Melhor Atriz (quando as regras da Academia o permitiam; sendo a segunda nomeação referente a Romance, também de Brown), e o estatuto adquirido por tal proeza trouxe-lhe ainda mais fama e dimensão mediática, provocando uma inesperada reação de recolhimen­to face à imprensa. Daí que “Garbo talks!” se possa ler, acima de tudo, como uma estratégia publicitár­ia a brincar com a reclusão da movie star...

Ainda veria a sua aura reforçada pelo papel da espia Mata Hari e pela repetição de Anna Karenina, sem esquecer a Dama das Camélias Marguerite Gautier (pela mão de George Cukor) e a fabulosa Ninotchka (de Ernst Lubitsch), que fez a MGM anunciar “Garbo laughs!” (“Garbo ri!”), contrarian­do desta feita a imagem da frieza nórdica.

Mas será a bailarina de Grand Hotel (1932) que melhor condensa a mitologia da mulher que queria ser deixada em paz; não necessaria­mente sozinha. “I want to be alone. I just want to be alone!”, diz, encostada à porta, vestida com o seu fato de ballet. E jamais alguém o disse como ela.

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Garbo em Anna Christie (1930).

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