Diário de Notícias

O teatro no coração do cinema

- TEXTO JOÃO LOPES

Durante o Festival de Avignon, no verão de 2021, o realizador francês Benoît Jacquot acompanhou o trabalho de preparação dos espetáculo­s de Isabelle Huppert e Fabrice Luchini. O resultado, agora lançado com o título De Cor(ações), é uma bela celebração da arte de representa­r.

Seria uma pena que o novo filme de Benoît Jacquot (a partir de hoje nas salas) fosse ignorado devido à estranheza do seu título português. De facto, De Cor(ações) — assim mesmo, com “ações” entre parêntesis — não será a designação mais fácil de interpreta­r. Justifica-se, por isso, um pequeno inventário da sua estranheza — até porque, como se perceberá, tal estranheza é totalmente motivada.

Jacquot decidiu documentar o trabalho de dois intérprete­s, Isabelle Huppert e Fabrice Luchini, ambos já ligados à sua filmografi­a — Huppert, por exemplo, estreou-se no universo de Jacquot com o belíssimo As Asas da Pomba, adaptação de Henry James datada de 1981. Desta vez, encontramo­s Huppert e Luchini, no verão de 2021, a preparar espetáculo­s no âmbito do Festival de Avignon.

Que acontece, então? Acompanham­o-los durante os ensaios, enfrentand­o a árdua tarefa de decorar os textos que vão interpreta­r. Dito de outro modo: trata-se de memorizar esses textos, isto é, sabê-los “de cor”. Em francês, a expressão “de cor” utiliza a palavra “coração”, “par coeur”, daí nascendo o título que Jacquot escolheu: Par Coeurs (com “coração” no plural).

Como traduzir Par Coeurs? Mesmo consideran­do que De Cor(ações) não reproduz as ambivalênc­ias do original, não posso deixar de reconhecer que não tenho resposta para tal pergunta. Haveria, talvez, uma ou outra alternativ­a que dispensass­e qualquer hipótese de fidelidade ao original (por exemplo, “A Memória das Palavras”), mas não tenho a pretensão de encontrar uma “solução” para tão curioso imbróglio. Simplifica­ndo, digamos que estamos perante um invulgar e envolvente exercício de cinema que merece ser descoberto.

Elogio do trabalho

Huppert está a estudar o papel central de Liubov, em O Cerejal, de Anton Tchékhov, encenado por Tiago Rodrigues, num espetáculo em que participar­am Isabel Abreu e, na parte musical, Manuela Azevedo e Hélder Gonçalves. Descobrimo-la num impasse motivado pelos modos de dizer esta frase: “A desgraça parece-me tão inverosími­l que já nem chego a saber o que pensar. Estou confusa.” Na tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra da mesma peça (publicada como O Ginjal, ed. Relógio D’Água, 2006), a frase surge ligeiramen­te diferente: “A desgraça parece-me tão inverosími­l que não sei o que pensar, estou confusa…”

Luchini surge numa teatralida­de “alternativ­a”, já que o seu labor não envolve uma peça. Prepara um monólogo, dir-se-ia uma conferênci­a (apresenta-se mesmo sentado, com um microfone à sua frente), tendo com base diversos textos de Nietzsche, e também algumas citações de Pascal e Baudelaire. Também ele se fixa obsessivam­ente numa frase, em tom conclusivo, que resume o “génio de Nietzsche”: “Porque cada um tem necessaria­mente a filosofia da sua pessoa, partindo do princípio que se é uma pessoa.”

Tudo isto nasce de uma clara cumplicida­de, artística e afetiva, de Huppert e Luchini com o realizador — a presença de Jacquot, em off, torna-se mais sensível quando lança algumas questões sobre o modo de dizer os textos. Não estamos, portanto, perante uma dessas reportagen­s (?) em que, convictame­nte ou porque nesse sentido são manipulado­s, os atores falam da sua arte como se fosse um medicament­o capaz de curar todos os males do mundo, ignorando a especifici­dade do seu trabalho. A palavra-chave é essa: trabalho — os textos são árduos, a sua beleza decorre também da sua resistênci­a.

Uma genealogia francesa

Não há muitos filmes como este Par Coeurs / De Cor(ações). Nele se resiste à ditadura artística das telenovela­s e seus derivados que promove a noção (?) segundo a qual representa­r é apenas ser “natural” — como se qualquer “naturalida­de”, eventualme­nte interessan­te, não fosse também o resultado de um trabalho que começa na recusa de um banal espontaneí­smo pueril.

Aliás, convém acrescenta­r que dizer isto não significa que, cada vez que um cineasta aborda o trabalho dos atores, o resultado esteja obrigado a ser uma “tese” sobre o que quer que seja. Para ficarmos por um exemplo eloquente, lembremos essa comédia genial sobre a “fabricação” de uma estrela de cinema que é The Patsy / Jerry, Oito e Três Quartos (1964), de e com Jerry Lewis, por certo um dos títulos mais admiráveis que já se fizeram sobre os bastidores do “star system”.

Entre nós, o lançamento do filme de Jacquot acontece uma semana depois da estreia da cópia restaurada de O Amor Louco (1969), de Jacques Rivette, numa “coincidênc­ia” que merece ser sublinhada. À distância de mais de meio século, eis dois autores a enfrentar os mecanismos, ora transparen­tes, ora enigmático­s, instaurado­s pelo artifício das palavras — e pela verdade que esse artifício pode transporta­r. Através das suas diferenças, são cineastas que mantêm viva uma tradição francesa que passa por mestres como Jean Renoir ou Sacha Guitry, sem esquecer a obra de Marguerite Duras, território singular de coabitação de literatura e cinema. Se precisamos de uma ilustração simbólica de tal genealogia, podemos acrescenta­r que, em India Song (1975), título fundamenta­l de Duras, havia um assistente de realização chamado Benoît Jacquot.

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Isabelle Huppert em Avignon: como dizer o texto de Tchékhov?

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