Diário de Notícias

Demolições em Loures: “A minha vida ficou debaixo do entulho”

Cinco construçõe­s ilegais foram deitadas abaixo, no bairro do Zambujal. Uma família ficou sem todos os pertences. Os que ficaram sem teto dormem em casa de familiares ou vizinhos.

- TEXTO ISABEL LARANJO

E “stava a dormir e de repente ouvi um barulho. Saí à rua e veio um senhor da Câmara perguntar quem era o dono da casa. Eu disse: ‘Sou eu’. Mandou-me tirar as coisas de casa porque iam demoli-la.” O relato é de Maria Semedo, auxiliar num centro de dia para idosos. A mulher, de 54 anos, acabou por sentir-se mal, foi assistida no local pelos bombeiros e levada para o hospital. “Estava sozinha. Tenho dois filhos, um de 28 e outro de 20 anos, mas um tinha ido trabalhar e o outro tinha ido estudar. Não consegui tirar nada de dentro de casa”, revela esta moradora do bairro do Zambujal, em Loures, local onde a autarquia demoliu algumas barracas. “Ficou a cama, a mobília do quarto dos meus filhos, carteiras com documentos, dinheiro. A minha vida ficou toda debaixo do entulho”, lamenta. “Naquele momento fiquei sem conseguir sentir nada, fiquei fora de mim”, recorda.

Agora, sem possibilid­ade de pagar uma renda no mercado imobiliári­o privado, está a dormir num quarto de uma vizinha, com os dois filhos. “Ainda não fui pedir ajuda, não sei onde é que eu vou”, diz, desesperad­a.

No meio do entulho são visíveis vários pertences. A cama partida, gavetas, um fogão. Ao lado, outra casa abarracada também foi demolida. “É a minha casa. É a minha casa”, repete, apontando com o dedo pequenino, Ema, uma menina de apenas quatro anos. “Morava aqui há um ano. Nem eu nem o meu marido estávamos em casa, tínhamos ido trabalhar”, relata Cleudiza Furtado, 28 anos, mãe da pequena Ema, que tem ainda outro filho menor. “Ligaram-me e vim logo para cá. Quando cheguei já estavam a demolir tudo.”

Cleudiza teve mais sorte que Maria: conseguiu que alguém lhe retirasse os pertences de casa. “Felizmente, o meu padrasto, o meu marido e o meu sogro conseguira­m tirar as nossas coisas de dentro de casa, mas uma cama ficou lá dentro.” Agora, voltou para casa da mãe. “Somos oito pessoas em três quartos, um deles muito pequeno.” Esta família também ainda não se dirigiu aos serviços de ação social do município de Loures para pedir ajuda. “Estamos em choque”, afirma Cleudiza, operária fabril. Ela e o marido ganham ordenados mínimos. Com duas crianças menores a cargo, garante: “Não tenho dinheiro para pagar uma renda de casa aos preços a que estão.”

Miguel David Pires, 56 anos, fugiu da violência doméstica. Ainda não estava instalado na construção abarracada. Agora, dorme na única divisão, um pequeno quarto, que sobrou da demolição. “Estava aqui e, de repente, chegaram ali e partiram a casa. Ainda não tinha mobília, tinha lá as ferramenta­s, que consegui tirar, porque ainda estava a acabar a casa.”

Cabisbaixo, revela a sua história e a razão de ter construído uma casa abarracada naquele terreno, que é público, em situação ilegal. “Antes vivia com a mulher e o filho. Só que a mulher ameaçou que queria matar-me e eu, para não ter problemas, saí de casa e vim fazer esta casa aqui, que foi abaixo.”

Não foram afixados avisos nas portas das casas a demolir

“A nossa equipa de fiscalizaç­ão já por três vezes tinha passado no bairro e dado esta informação, sem possibilid­ade de encontrar, presencial­mente, alguém dentro das casas para poder dar nota. Demos informação através da Comissão de Moradores. Disse-lhes que iria proceder à demolição logo que tivesse a possibilid­ade de ter máquinas. Portanto, já estava no imediato”, explica Sónia Paixão, vice-presidente da Câmara Municipal de Loures.

O município irá construir, na mesma zona, 41 fogos. O recenseame­nto das famílias, a quem serão atribuídas as novas casas, foi terminado em 2021. Algo que desagrada aos moradores. “As famílias foram crescendo. Então, não é feita uma atualizaçã­o desse recenseame­nto? Disseram-nos que não”, lamenta Helder Furtado, da Comissão de Moradores do Bairro do Zambujal.

Entretanto, na terça-feira, foi demolida mais uma barraca, desta vez no bairro de Montemor, também em Loures. “A informação que temos é de que é uma família de cinco elementos, com um menor, que tem possibilid­ades de manter uma renda de casa”, justifica Sónia Paixão, ao DN. Do bairro, vem um relato diferente: “O casal tem um filho doente, foi por isso que vieram de São Tomé. Uma advogada tentou apoiar-nos mas a Polícia não a deixou entrar no bairro. O rapaz tem cerca de 18 anos, esteve muito tempo internado e ainda há pouco tempo teve de voltar para o hospital”, conclui Rute Sacramento, uma vizinha em choque com esta realidade.

“Ficou a cama (...) documentos, dinheiro. A minha vida ficou toda debaixo daquele entulho.”

Maria Semedo Auxiliar num centro de dia

“Somos oito pessoas em três quartos, um deles muito pequeno. (...) Estamos em choque. (...) Não tenho dinheiro para pagar uma renda.” Cleudiza Furtado Operária fabril

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Demolições Duas casas abarracada­s e três anexos foram destruídos no bairro do Zambujal. Uma casa e um anexo foram abaixo no bairro de Montemor.

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Construção O município de Loures vai construir 41 fogos no bairro do Zambujal para realojar famílias recenseada­s até 2021.

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Emergência Este é o número, grátis, que quem está em situação de emergência social deve ligar para obter apoio e resolver a sua situação.

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Ema, de quatro anos, deambula pelo entulho, no local onde era a casa abarracada da família.

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