Ewan McGregor é o gentleman dos gentlemen
O ator escocês esmera-se na pele de um aristocrata russo que escapa à morte, no fim do czarismo, ficando em prisão domiciliária num hotel de luxo. Eis o protagonista de Um Gentleman em Moscovo, série baseada no êxito literário de Amor Towles, em estreia n
Um dia, as chamadas séries de “domingo à tarde” vão tornar-se obsoletas, se é que não o são já. Que séries? Aquelas que não têm um particular tom político, que não tentam inventar a pólvora, que só querem dar ao espectador uma sensação de familiaridade e conforto, sem os laivos da excentricidade da moda. Numa palavra, séries inofensivas, que aquecem e não arrefecem. Séries que, cumprindo o seu propósito, mostram uma compreensão artesanal dos clichés – aí importa acarinhá-las. Acarinhemos, portanto, Um Gentleman em Moscovo, acabada de chegar à SkyShowtime, adaptação do best-seller homónimo de Amor Towles, que traz Ewan McGregor no papel principal, certamente uma personagem que entrará para a galeria das suas melhores interpretações. Personagem que representa, ela própria, um modelo obsoleto na Rússia da Revolução Bolchevique: é um aristocrata e, nessa qualidade de espécime da elite russa à época, tinha como destino quase certo ser fuzilado... não se desse o caso incrível de ter escrito um poema de simpatias revolucionárias nos tempos de juventude. Quem diria...
A série de oito episódios, criada por Ben Vanstone (com provas dadas como showrunner de outro “conforto televisivo”, OVeterinário de Província), começa exatamente no tribunal bolchevique onde Aleksandr Ilitch Rostov, poupado à morte em virtude desse inaudito poema, fica a conhecer a sua sentença, resultante de um conflito de forças entre os bolcheviques moderados e a fação intransigente. A saber: Rostov, mais conhecido por “Conde”, deverá passar o resto dos seus dias na prisão... que é um hotel de luxo em Moscovo chamado Metropol. Com um pequeno transtorno: se puser um pezinho que seja fora do estabelecimento prisional improvisado, é executado na hora.
Estamos no ano de 1921, e neste cenário o Conde limita-se a voltar ao local onde já se encontrava hospedado em estilo de domicílio. O que ele ainda não sabe é que terá de renunciar às suas posses e passar da suíte ostentosa para um quarto de sótão minúsculo e frio, onde receberá ocasionalmente a visita do rosto visível dos seus carcereiros (um indivíduo de origens humildes, carrancudo como uma pedra, que acabará por querer aprender os modos de cavalheiro). As refeições, porém, são gratuitas, assim como não se observam impedimentos à circulação dentro do hotel.
A arte perdida do cavalheirismo
O que é que falta acrescentar? Que o Conde Rostov não será o tipo de personagem arrogante que costuma resultar destes contextos de repentina mudança de estatuto. Aliás, Ewan McGregor sabe lindamente equilibrar a altivez natural do ser habituado a todas as mordomias com o âmago bondoso do homem que gosta de interagir com os outros e é capaz de se adaptar, sem queixas, à melancolia da sua condição de “peça descartada” no progresso social.
Um perfil que parece ter saído intacto do livro de Towles (por cá editado pela Dom Quixote), cuja prosa é uma absoluta delícia. De resto, não tenhamos dúvidas de que qualquer descrição sugestiva da personalidade do Conde encontra perfeito equivalente no que vemos o ator construir com postura refinada: “O Conde era uma espécie de anfitrião”; “orgulhava-se de envergar um casaco bem talhado, mas orgulhava-se ainda mais de saber que a presença de um cavalheiro se fazia anunciar muito melhor pelo seu porte, os seus comentários e os seus modos”; “não tinha feitio para vinganças; não tinha imaginação para epopeias, e decididamente não tinha o ego vaidoso para sonhar com impérios restaurados”.
É este o gentleman que dá alma ao Hotel Metropol. É ele, de bigode vigoroso e cabelo de cientista maluco, que mantém a chama de uma certa forma de existência, ou pelo menos de uma forma de ser, em vias de extinção. Alguém que sofre delicadamente com a pouca importância dada a uma garrafa de vinho (“ela capta um momento na História!”, diz) e observa à sua volta o declínio de instituições como o sentido de honra. Quem com ele entabular conversa, ou algo mais, terá prazer garantido – e são vários os que o fazem no hotel, desde Nina, a criança que se afeiçoa de imediato a esta figura ímpar (e que há de crescer trazendo consigo os sintomas da mudança do país), a Anna Urbanova (interpretada pela própria mulher de McGregor, Mary Elizabeth Winstead), uma atriz que tenta sobreviver no atual regime, constituindo-se o interesse amoroso do Conde; este, como ser benévolo que é, subjugado aos seus caprichos... Entre as personagens femininas, atente-se, no quinto episódio, a uma jovem atriz que cai nas graças do regime de Estaline, roubando as atenções que dantes estavam voltadas para Urbanova – essa atriz surge numa interpretação da portuguesa Inês Pires Tavares e entre ela eWinstead estabelece-se uma breve e interessante influência recíproca.
Um Gentleman em Moscovo faz-se da matéria destas e de outras relações, tendo sempre o Conde como ponto luminoso, apesar de não deixar de ser habitado por tormentosos flashbacks. Seja como for, não há aqui movimentações bruscas ou grande desvio dos clichés que preservam a ordem dos afetos e a suavidade da proposta domingueira. A série procura o charme do livro, o calor que emana do seu protagonista démodé, mantendo-o longe da realidade política, mas ciente do mundo cruel que se ergue fora daquelas portas, com a morte a passar nas entrelinhas e os valores humanos a serem atropelados pela força motriz da História. É também, à semelhança do livro – e com a eloquência possível –, um elogio às personalidades que não se adequam aos tempos porque guardam no espírito uma gentileza em desuso. Nota: não confundir com a noção de retrógrada, que recentemente voltou a entrar no discurso mediático.
Um Gentleman em Moscovo, acabada de chegar à SkyShowtime, adaptação do best-seller homónimo de Amor Towles, traz Ewan McGregor no papel principal.
1 Herdeiros que somos da violência prática e simbólica da censura, vivemos agora no interior deste ecumenismo narrativo que a democracia gerou. Democraticamente, claro, com a bênção do triste naturalismo televisivo que quase ninguém arrisca questionar. Como pano de fundo, entende-se que representar o mundo à nossa volta é acumular informações “objetivas”, que desembocam quase sempre numa leitura determinista e redentora – tudo acontece para “ilustrar” um sentido das coisas que, afinal, conhecíamos antecipadamente.
2 A política, a história e o quotidiano estão agora codificados pela mesma estreiteza mental que começou por parasitar as artes. Releia-se Susan Sontag: “Hoje vivemos numa época em que o projeto de interpretação é geralmente reacionário, sufocante. Como o escape do automóvel e da indústria pesada que inquinam a atmosfera urbana, as emanações das interpretações da arte são hoje venenosas para as nossas sensibilidades.” Enfim, as palavras de Sontag são de 1964 (Contra a Interpretação e Outros Ensaios, ed. Gótica, 2004). Seria simplista transpô-las automaticamente para o nosso presente. Mas há uma questão que se renova: como lidar com as representações que invadem a nossa perceção? Imagens e sons, portanto – sempre.
3 Nos últimos meses, três livros editados em 2023 têm-me ajudado nesta renovada interrogação do que vemos e ouvimos. O primeiro, Habitar o Tempo: Júlio Alves na Maison Cinéma de Pedro Costa (ed. The Stone and the Plot), não será um livro em sentido corrente. Trata-se da edição em DVD de quatro filmes de Júlio Alves – talvez possamos dizer “ensaios videográficos” –, que, direta ou indiretamente, percorrem recantos da obra de Pedro Costa, citando Casa de Lava (1994), Ossos (1997), No Quarto da Vanda (2000), Juventude em Marcha (2006), Sweet Exorcist (2012) ou Cavalo Dinheiro (2014). O livro/DVD é apresentado por um texto de Luís Mendonça, que, de forma rigorosa e envolvente, sublinha essa condição do cinema como uma forma (de muitas formas) de habitar as casas do nosso viver – atrevo-me a dizer: do nosso “viver mal” e “mal viver”, apropriando-me dos títulos do recente díptico de João Canijo. Aí encontramos a sugestiva memória de um texto de Serge Daney sobre Nicholas Ray (Fúria de Viver, etc.), descrevendo o cinema como uma “casa para imagens”, quer dizer, imagens “que não mais têm um lar”.
4 Daí a sensação (ia a escrever a certeza…) de que o cinema não está condenado a aceitar o primarismo televisivo segundo o qual uma imagem se esgota na reprodução de uma “coisa” transparente e definitiva. O cinema existe como forma de inventariar as casas que habitamos, as que abandonámos e também as que se tornaram inabitáveis – em oposição às casas das telenovelas, que não existem a não ser como cenários automáticos e automatizados, sempre iluminados pela mesma luz usada nos noticiários. É também disso que fala o professor e filósofo francês Jacques Rancière numa antologia com um título que relança as imagens e os imaginários das casas: Pedro Costa – Os Quartos do Cineasta (ed. Relógio D’Água, tradução de Maria João Madeira).
5 Reagindo aos que acusam Pedro Costa de filmar as Fontainhas à procura do “espetáculo da miséria”, Rancière contrapõe a questão humana por excelência. Ou melhor, a verdade ética e estética de um cinema que não desiste do fator humano: “O quarto de Vanda e as ruelas do bairro em demolição são também o teatro de uma atividade incessante – bricolage de lugares onde viver, venda de salada ou de flores, tráfico de pássaros ou de colheres roubadas –, nem que seja para pagar a dose diária, são o teatro de uma fala que não é simples lamento, mas também debate para saber se a vida é ou não a que escolhemos.”
6 Tudo isto, enfim, suscita as mais diversas questões sobre o que vemos nos inúmeros ecrãs que povoam o nosso mundo (incluindo as nossas casas). Mais do que isso: a “aceleração” das imagens – observem-se os spots promocionais das notícias televisivas – tende a promover a ilusão de que a “velocidade” é uma prova de verdade jornalística. Daí o valor pedagógico de um outro trabalho de Luís Mendonça: o livro Majestosa Imobilidade (Edições 70); o seu subtítulo propõe mesmo um regresso às origens do cinema como uma “variação” sobre a quietude da fotografia: Contributo para uma teoria do fotograma.
7 De que falamos quando falamos de fotograma? A pergunta justifica-se na sua dimensão mais cândida, já que a nova ideologia televisiva (alheia a tudo o que é imaginação e risco criativo dentro do próprio espaço televisivo) passou a viver no mundo dos frames. Aliás, os apóstolos dessa ideologia não sabem que os filmes são… filmados, e não “gravados” (fórmula obscena cúmplice do domínio narrativo das novelas). O livro de Luís Mendonça projeta-nos nessa aventura que as imagens podem conter. Penso, por exemplo, na evocação de Belarmino Fragoso em Belarmino (1964) e Claude Brasseur em O Fio do Horizonte (1993), referindo as suas parecenças com Fernando Lopes, realizador de ambos os filmes. Não haveria maneira mais depurada de lembrar esse poder sem nome, certamente poético, que faz com que a vida de uma imagem, na imobilidade do fotograma, possa contrariar o movimento invisível da morte.
Como vemos e interpretamos as imagens que nos rodeiam? Eis uma questão de vida e de morte.