Diário de Notícias

O ano de 1899 foi de velocidade furiosa nas estradas francesas

- TEXTO JORGE ANDRADE

A última década do século XIX saldou-se por aceleraçõe­s nas planícies francesas. Dois pilotos lançaram-se numa disputa sobre quatro rodas. Um francês e um belga competiam pelo recorde de velocidade terrestre em automóvel elétrico. Os bólides Jamais-Contente e Duc II disputavam a fasquia dos 100 km/h.

Na sua paleta compôs as cores subtis que perpetuara­m cenas como A Aula de Dança, óleo sobre tela em mostra no Museu d’Orsay, em Paris. Edgar Degas, mestre do impression­ismo, captou com particular sensibilid­ade o mundo do ballet. Também enveredou a sua obra plástica por outros mundos, retratou o ambiente boémio dos cafés parisiense­s, as corridas de cavalos, mas também instantâne­os intimistas, em família.

No ano de 1871, o pintor e gravurista, nascido em 1834, imortalizo­u em quadro um trio de amigos. Jeantaud, Linet et Lainé, assim intitulada a obra, revela os companheir­os de Degas na Guerra Franco-Prussiana, conflito decorrido de 1870 a 1871. O artista servira, então, na Guarda Nacional, comprometi­do com a defesa da capital francesa. Detêm-se meditativo­s os três companheir­os de armas retratados no quadro, atualmente em exposição no Museu d’Orsay, após décadas no Louvre. À esquerda, tomando o ponto de vista do espectador, um jovem Charles Jeantaud fixa o olhar algures à margem do quadro. A posição imóvel a que Edgar Degas entregou para a posteridad­e o amigo contraria os empreendim­entos que este alcançou fora do mundo delineado entre os quatro hemisfério­s de uma moldura. Jeantaud, engenheiro e inventor, contribuiu para lançar a França dos finais do século XIX na mais louca corrida automobilí­stica até então. Em poucos meses, entre o final de 1898 e abril de 1899, dois homens, a bordo de carros elétricos de fabricante­s concorrent­es, bateram sucessivos recordes de velocidade. Em 1899, um bólide avançou nos campos franceses à vertiginos­a velocidade média de 105,88 km/h. O carro, invenção com poucas décadas naquele final do século de oitocentos, empurrava a humanidade para novos limites. A competição entre as viaturas mais velozes trazia motivações várias, entre elas a de conquistar o apetecível mercado parisiense de aquisição de veículos elétricos. Três homens protagoniz­aram este capítulo da história automóvel: o já referido Charles Jeantaud, o piloto francês Gaston de Chasseloup-Laubat e o piloto e fabricante belga Camille Jenatzy.

Ao longo de décadas contou-se que o imperador Napoleão III, de França, fora o primeiro soberano a atingir a velocidade de 100 km/h a bordo de uma locomotiva, numa viagem entre Marselha e Paris. O ano era de 1855 e em breve o mundo conheceria outros limites para a velocidade. Em 1886, o inventor alemão Karl Benz apresentou aquele que é tido como o primeiro carro Com três rodas, a viatura singrava a uma velocidade máxima de 16 km/h. Dez anos após a viagem inaugural do Benz Patent-Motorwagen, a indústria automóvel beneficiav­a de avanços tecnológic­os tributário­s do século XIX. Em 1834, o norte-americano Thomas Davenport, a par com a sua mulher, Emilly, desenvolve­u o primeiro motor elétrico movido a bateria. A dupla empreendeu então a utilização da eletricida­de como meio de propulsão de viaturas de locomoção autónoma. Em 1840 os Davenport levavam a eletricida­de para o mundo da impressão. The Electromag­netic and Mechanical Intelligen­ce foi a primeira publicação impressa na totalidade com recurso a maquinaria elétrica. Nas estradas, a primeira década do século XX assistia a uma revolução nos Estados Unidos. Mais de um terço dos automóveis em circulação moviam-se a energia elétrica. Na Europa, na década de 1850, nascia uma bateria recarregáv­el engendrada pelo físico francês Gaston Planté.

Espicaçado­s pelo desafio lançado pela revista France Automobile – o de ver batido o recorde de velocidade terrestre a bordo de um automóvel –, a marca Jeantaud, com o seu veículo Duc II, e a engenharia de Jenatzy, com o veículo Jamaismode­rno. -Contente, fizeram das planícies de Achères o palco de todos os recordes. A bordo do Duc II sentou-se Gaston de Chasseloup-Laubat, filho do ministro da Marinha de Napoleão III. A apoiar o piloto, nascido em 1866, estava o conhecimen­to da marca fundada em 1893 e construtor­a do primeiro carro movido a bateria. A contenda opunha Gaston ao temível piloto conhecido como “Diabo Vermelho”, numa alusão à sua barba ruiva. Filho de um fabricante de produtos manufatura­dos à base de borracha, Camille estudara engenharia elétrica, interessou-se pela tração elétrica para automóveis e fez-se construtor de táxis movidos a eletricida­de em circulação nas ruas de Paris. Também construiu o Jamais-Contente, o veículo torpedo de carroçaria fabricada com uma liga metálica. Mais de metade dos 1450 kg da viatura estavam entregues a duas baterias elétricas com uma potência máxima de 65 cavalos.

Entre 18 de dezembro de 1898 e 29 de abril de 1899, a pista com 2 km de extensão serviu de palco à evolução da disputa entre Gaston e o seu Duc II e Charles e o seu Jamais-Contente. Coube ao piloto gaulês a primeira vitória, ao completar 1 km em 57 segundos, a uma velocidade média de 63,15 km/h. Tempo que melhorou um mês depois, a 17 de janeiro de 1899, elevando a velocidade média para os 66,65 km/h. A glória foi de pouca dura. Dez dias mais tarde, Camille bateu o recorde com a velocidade de 80,35 km/h. A 4 de março, nova reviravolt­a na tabela, com o Duc II a evoluir a 92,69 km/h. Por último, a 29 de abril de 1899, Jenatzy atirou a sua viatura para além dos 100 km/h. A velocidade média do Jamais-Contente foi de 105 km/h. Uma vitória não obstante os obstáculos à aerodinâmi­ca do veículo, dada a alta posição de condução do piloto. O recorde permanecer­ia intocado nos três anos seguintes. A 13 de abril de 1902 o piloto francês Léon Serpollet alcançou uma velocidade média no solo de 120,8 km/h a bordo de uma viatura a vapor. Nos anos vindouros, os recordes de velocidade em terra migrariam para os Estados Unidos. Em 1906, Daytona Beach assistia a um novo limiar na velocidade automóvel. O piloto Fred Marriott alcançava os 205,44 km/h na garupa de um automóvel a vapor. Findava a era dos recordes batidos a bordo de viaturas elétricas e a vapor. O motor de combustão interna impunha-se dos dois lados do Atlântico.

Gaston faleceu em 1903, após dois anos de padeciment­o. Camille morreria 10 anos depois, vítima de um acidente de caça. Certa tarde escondeu-se sob um arbusto. Pretendia ludibriar os amigos de caçada. Imitou um animal selvagem e a resposta foi uma saraivada de chumbo. Camille morreu a bordo de um automóvel Mercedes, lançado a grande velocidade na estrada rumo ao hospital.

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Camille Jenatzy (imagens no topo) e Gaston de Chasseloup-Laubat mantiveram uma acesa disputa pelo recorde de velocidade.

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