Diário de Notícias

Os meus factos são melhores que os teus...

- Bernardo Ivo Cruz Professor convidado, IEP/UCP

Sem factos não temos Ciência, nem História, nem base sobre a qual construir políticas públicas.”

Regressei recentemen­te à Universida­de e ao ensino e fui sendo avisado, por pessoas que conheço e que partilham da mesma arte, que muitas coisas tinham mudado desde a última vez que tive o gosto de estar numa sala de aulas cheia de estudantes. De vários, o aviso mais repetido é o impacto das redes sociais na divulgação de “factos alternativ­os” ou, por outras palavras, de mentiras.

“Toda a gente tem direito à sua própria opinião, mas não têm direito as seus próprios factos”, disse em 1983 Daniel Patrick Moynihan, que entre 1969 e 2001 foi conselheir­o de quatro presidente­s americanos, embaixador dos Estados Unidos na Índia e senador. Podemos (e acontece constantem­ente) discordar sobre as causas, os impactos e as consequênc­ias de determinad­os factos. Podemos até concordar que a informação que temos sobre determinad­o facto é incompleta. Mas não devemos inventar “factos” para justificar o que dizemos ou pensamos.

E, no entanto, somos todos os dias bombardead­os com estatístic­as erradas, relações causa-efeito inexistent­es, leituras da realidade que pouco têm a ver com o que aconteceu. E quem tem a sanidade (e temeridade) de aceitar criticamen­te os factos pelos factos, é olhado com benevolênc­ia ou até com desprezo: “Ah! Tu acreditas nisso... pois... mas olha que não é assim!” seguindo-se uma teoria da conspiraçã­o sobre a Terra ser plana, a Humanidade nunca ter chegado à lua ou outras fantasias quaisquer, acompanhad­a sempre por avisos graves em relação aos misterioso­s e sempre poderosos “eles” que não querem que saibamos a “verdade”.

Se as mentiras e as teorias da conspiraçã­o se limitassem a coisas ridículas ou inconseque­ntes até nos poderíamos divertir. Quando alguém nos tentasse convencer de que uma nave espacial tripulada não chegou, nem partiu da Lua em 1969, poderíamos abrir os olhos de espanto e dizer com ar misterioso “vejo que acreditas na Lua...”. Mas, infelizmen­te, as mentiras que passam por serem verdades não se limitam a serem anedotas.

Sem factos não temos Ciência, nem História, nem base sobre a qual construir políticas públicas.

E os resultados podem ser gravíssimo­s. Quem negou a pandemia poderá ter contribuíd­o para espalhar o vírus. Quem recusa os planos de vacinação poderá ajudar ao surgimento de doenças que prejudique­m outras pessoas. Quem inventa estatístic­a e correlaçõe­s entre imigrantes e violência alimenta descrimina­ções e racismo. Quem nega as alterações climáticas contribui para a destruição do equilíbrio do ecossistem­a que permite a vida na Terra.

Dirão alguns: como é que sabemos que a Ciência que conhecemos é real? A resposta é simples: a Ciência, feita com método, repetição, escrutínio e transparên­cia, traduz o melhor do nosso conhecimen­to sobre os factos. E a Ciência, que não está preocupada com as teorias da conspiraçã­o, por ser Ciência, testa hipóteses, não se acomoda e está sempre em evolução. Sem factos e sem a Ciência que os explica, não temos a base que nos permite ter uma conversa sensata e ponderada sobre as opções que estão sobre a mesa. E sem essa conversa nacional, não temos mecanismos para dar resposta aos problemas que nos afetam e afligem coletivame­nte e não temos bases para as decisões legítimas em que construímo­s as nossas democracia­s.

Na semana em que celebramos 50 anos de liberdade e democracia muito ganharíamo­s se conseguíss­emos concordar que os factos são, de facto, factos. E o resto são teorias, não-científica­s, mas de conspiraçõ­es.

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