O champanhe De Sousa, o soldado minhoto na Flandres e Soares e Cunhal a debater em francês
Aceito uma taça de champanhe De Sousa e penso como, da passagem do Corpo Expedicionário Português (CEP) por França, ficou na memória coletiva o heroísmo do soldado Milhais e a tragédia de La Lys, a pior derrota portuguesa depois da Batalha de Alcácer Quibir, pois a 9 de abril de 1918 foram mortos 400 soldados numa questão de horas e outros sete mil feitos prisioneiros.
Autor do livro De Lisboa a La Lys, sobre a história do CEP, Filipe Ribeiro de Menezes contou-me há uns anos, numa entrevista aquando do centenário da batalha, um lado mais pessoal da história: a família só ter descoberto que o seu avô Mário estava vivo e preso na Alemanha por uma foto ter sido publicada no DN a acompanhar uma pequena notícia sobre os cativos portugueses. Dos sobreviventes, muitos nunca mais foram os mesmos, com traumas físicos e psicológicos vários e as consequências desconhecidas dos ataques com gás.
Não consegui apurar se o minhoto Manuel de Sousa combateu em La Lys ou se nos tempos passados nas trincheiras, na Flandres, conheceu o transmontano Aníbal Milhais, cujos feitos lhe valeram ser promovido a Milhões, o célebre Soldado Milhões, que mesmo com as linhas portuguesas desfeitas continuou na sua trincheira a disparar a metralhadora Lewis, a nossa “Luísa”, contra os alemães. Mas no dia de um debate sobre os 50 anos do 25 de Abril organizado no Palácio de Santos, onde fica a embaixada francesa, dei por mim a provar o tal champanhe De Sousa. Sim, De Sousa, pronunciado muito provavelmente De Souzá. E foi Paulo Dentinho, antigo correspondente da RTP em Paris, que me contou, com gosto, a história, que, aliás, deu origem a uma reportagem sua que passou na televisão portuguesa.
Em rápidas pinceladas, eis essa história: Manuel de Sousa (originário da “província de Braga, perto do Porto”, diz o site do champanhe De Sousa) combateu em França na Primeira Guerra Mundial, regressou a Portugal onde o esperava a mulher, mas o pequeno comércio que tinha não correu bem e surgiu a ideia de emigrar. Para França. O casal mais o filho António, nascido pouco antes, fixou-se em Avize. Manuel começou a trabalhar no campo e a família foi crescendo. Mas aos 29 anos o antigo soldado morre (consequência do gás nas trincheiras?). A viúva teve de criar sozinha quatro crianças, ou seja o António que nasceu em Portugal e três francesinhos. E um dia António, já Antoine, apaixonou-se por Zoémie, cuja família, os Bonville, tinham vinhas.
Os De Sousa produtores de champanhe vão agora na quarta geração, com Charlotte, Julie e Valentin a sucederem a Erick, enólogo que morreu no ano passado. A ligação a Portugal é ténue, mas em tempos visitaram a Região do Douro e também Lisboa.
Quem faz questão de celebrar esta história luso-gaulesa é a Embaixada de França em Lisboa, que incluiu o De Sousa entre os campanhes que são servidos nos eventos ali organizados – soft power diriam os anglo-saxónicos. Uma celebração discreta, pois nem sempre quem bebe a taça de champanhe olha para o rótulo da garrafa.
Felizmente, Paulo Dentinho olhou e achou que eu ia gostar de conhecer este episódio das relações bilaterais, quase tão curioso como a TV francesa ter transmitido um debate que juntou Vítor Alves, do MFA, aos líderes partidários Mário Soares, Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral. Que debateram em francês!
O vídeo faz, aliás, parte de uma exposição reveladora do interesse com que os franceses seguiram a Revolução dos Cravos e que junta telegramas diplomáticos e primeiras páginas de jornais. Não esquecer que França foi a principal terra de asilo para quem fugiu do Portugal pobre e ditatorial que existiu até 1974, a mesma terra que acolheu, noutro contexto, o antigo militar do CEP, o que hoje nos permite brindar com um champanhe chamado De Sousa à amizade luso-francesa.