Diário de Notícias

Opinião Francisco George

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Na quarta-feira, dia 24 de Abril de 1974, interrompi o jantar para abrir a porta. Então, ao ter espreitado pelo óculo, vi um soldado com farda verde e boina na cabeça. Apesar de ter estranhado e de não ter reconhecid­o o visitante, abri a porta. O militar que, sem hesitar, entrou disse-me com determinaç­ão:

– Sei quem tu és! Venho requisitar uma linha de telefone que hoje é precisa!

Perante aquela demonstraç­ão de autoridade respondi que sim, sem ter percebido para que seria e sem ter formulado mais perguntas. Sabia que nessa altura era difícil ter telefone e que a Companhia dava prioridade aos médicos e, além disso, como eu tinha duas linhas, uma em casa e outra no atelier do R/C, não fiquei admirado. Por isso, respondi com naturalida­de:

– Então, puxe a linha de baixo que faz menos falta!

Acabei de jantar e depois fui ao quarto onde minha mulher estava a amamentar a nossa filha Catarina, que nascera no mês anterior, e disse-lhe:

– Olha, Maria João, um militar veio aqui a casa para requisitar o telefone do atelier!

Tal como eu, ingenuamen­te, não atribuiu qualquer importânci­a especial. À hora habitual fomos dormir. Pelas 4.00 horas da madrugada, acordei com o toque do telefone que atendi estremunha­do. Era meu pai, diretor do Hospital de Santa Marta, onde eu estava colocado como médico interno. Com voz visivelmen­te emocionada disse-me que tinha começado uma revolução e que o Posto de Comando estava a mandar os médicos para os hospitais. Disse-me que tinha acabado de ouvir o Comunicado do Movimento das Forças Armadas, emitido pelo Rádio Clube Português. Fora avisado pelo telefonema de um seu colega que sabia do Movimento. Num instante telefonei ao meu colega José Manuel Jara para se juntar a nós no Serviço. Curiosamen­te, antes de ir para Santa Marta, ele pôs o rádio na varanda, sintonizad­o no Radio Clube Português, com o som no máximo na perspetiva de acordar a vizinhança.

Uma vez em Santa Marta, todos nós, à volta da mesma mesa, estávamos a ouvir pela rádio os avisos do Posto de Comando que eram intervalad­os por marchas militares empolgante­s. Era um Serviço que concentrav­a cerca de 30 médicos, quase todos oposicioni­stas, democratas, incluindo antigos presos políticos. Muitos choravam de alegria, outros pelo PBX ligavam incessante­mente às famílias. Uma emoção coletiva difícil de descrever.

Perante a manifesta ausência de casos urgentes, resolvi ir para o Carmo, pela hora do almoço. Aí comecei por circular no passeio do lado contrário ao Convento, onde estavam deitados no chão, em fila, uns ao lado de outros, soldados com espingarda­s apontadas ao Convento. Os blindados do Regimento de Santarém cercavam Marcello Caetano, refugiado no Quartel da GNR desde cedo.

Pelo transístor portátil continuava a ouvir as emissões do Posto de Comando, mas também captava a banda das comunicaçõ­es entre as forças do Governo, da GNR e da PSP. Percebia-se pelas mensagens que recusavam obedecer às ordens das respetivas chefias. Estou convencido de que a multidão na rua, a apoiar a Revolução, funcionou como “escudo humano” que evitou derramamen­to de sangue e que, assim, protegeu as tropas dos Capitães do MFA.

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