Abril e uma força a crescer-me nos dedos
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de abril. Oiço o sinal de notificação no WhatsApp e abro a mensagem. É uma fotografia de uma ilustração alusiva ao 25 de Abril, feita pela minha filha, que foi selecionada para ser exposta na escola pública onde estuda. Escolheu desenhar uma mulher. Nas mãos carrega um punhado de cravos e num braço tem tatuada uma pomba da paz. O vestido é de princesa, mas a expressão séria e a arma que traz a tiracolo contrasta com os contos de fadas. Ao orgulho que sinto segue-se uma sensação de alívio por saber que hoje, com 14 anos, cinco décadas após Abril, a minha filha não só é livre para desenhar o que bem entender como, principalmente, pode ser o que quiser na vida. Hoje já não lhe está reservado, logo à partida, um papel subserviente, apagado, limitado em função do género. Foi precisa uma revolução para as mulheres conquistarem, por exemplo, o direito de voto universal ou para não dependerem de autorização dos maridos para desempenharem certas atividades profissionais. A sociedade evoluiu, apesar de bafientas bolsas de resistência, mas ainda há hábitos que se arrastam no tempo, como bem explicou Capicua
na letra de Que Força é essa, Amiga? (adaptação do clássico de Sérgio Godinho), em que fala da sobrecarga do trabalho doméstico e do cuidado parental que ainda incide na mulher em muitas famílias. O caminho para igualdade de direitos não está completo, mas foi com Abril que começou a ser trilhado com passos mais firmes.
23 de abril. Abro a porta da sala de aula e à minha frente estão duas dezenas de crianças de olhar curioso, entre elas o meu filho. O quadro já não é de ardósia, mas é ainda com um pau de giz que vou escrevendo datas históricas que o DN testemunhou e reportou ao longo dos últimos 159 anos. Falamos da importância que o jornalismo tem e terá no futuro das próximas gerações, que serão confrontadas com um número crescente de informações falsas que povoam as redes sociais. E falamos de valores fundamentais como a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. Tento passar a mensagem que são valores que devem prezar e defender. Não fosse Abril, esta conversa, neste local, livre de constrangimentos, seria impossível.
24 de abril. Passo os olhos pela última página da edição do DN e valido o envio para a gráfica. A edição é especial, assinala os 50 anos do 25 de Abril, mas o trabalho da redação obedeceu às regras de todos os dias: redigir e editar textos com o máximo de rigor jornalístico e que sejam uma mais -valia para o leitor. Fechada a edição, não deixo de pensar nas centenas de jornalistas que passaram por esta casa e que tiveram de cumprir a sua missão condicionados pela censura imposta durante os anos de ditadura. Privados de colocar as perguntas que bem entendiam. Obrigados a encontrar formas subtis de evitar o célebre “lápis azul” do censor, que aprisionava os jornais à vontade do Estado e empobrecia a informação prestada à população. Com Abril regressou a imprensa livre, um pilar fundamental da democracia. Ameaçá-lo é também ameaçar o país.
25 de abril. Cumpre-se a tradição e o cravo de Abril é colhido no jardim da minha mãe. À mesa falamos do papel transformador que a Revolução de 1974 teve na vida dos meus pais. Com ela vieram oportunidades, direitos laborais, um Serviço Nacional de Saúde a que continuam a recorrer e condições para que os filhos pudessem estudar até concluírem o Ensino Superior, obtendo uma formação académica que nunca lhes esteve ao alcance, quando cresciam naquele cinzento e desigual Portugal da ditadura. Nesta casa Abril segue vivo. Sempre!
26 de abril. No entanto, 50 anos depois de Abril, é possível assistir a conversas sobre retrocessos em direitos conquistados pelas mulheres, como o da InterrupçãoVoluntária da Gravidez. Notar que há uma disputa pelo voto dos jovens com base em discursos populistas que estimulam a visão do “nós contra eles”. Ver recuperada a ideia de voltar a impor o Serviço Militar Obrigatório em vez de se melhorar, efetivamente, as condições oferecidas a quem quer seguir carreira nas Forças Armadas. Sentir que a discussão sobre a importância do jornalismo livre, procurando formas de o apoiar, não é uma prioridade para o poder político. Ou perceber que ganha força a tese de que não vale a pena investir estruturalmente no ensino público e no SNS porque há toda uma rede no setor privado (para quem pode, é claro) que presta esses serviços e que deve, essa sim, ser financiada. Para explicar o que sinto perante tudo isto, sempre que alguém desvaloriza a herança de Abril e o tanto que nos deu, regresso a Capicua e a um excerto da letra de Sérgio Godinho que a rapper portuense escolheu para concluir a sua versão: “Não me digas que não me compreendes; quando os dias se tornam azedos; Não me digas que nunca sentiste; uma força a crescer-te nos dedos; e uma raiva a nascer-te nos dentes; não me digas que não me compreendes.”