Diário de Notícias

Abril e uma força a crescer-me nos dedos

- Pedro Sequeira Editor Executivo do Diário de Notícias

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de abril. Oiço o sinal de notificaçã­o no WhatsApp e abro a mensagem. É uma fotografia de uma ilustração alusiva ao 25 de Abril, feita pela minha filha, que foi selecionad­a para ser exposta na escola pública onde estuda. Escolheu desenhar uma mulher. Nas mãos carrega um punhado de cravos e num braço tem tatuada uma pomba da paz. O vestido é de princesa, mas a expressão séria e a arma que traz a tiracolo contrasta com os contos de fadas. Ao orgulho que sinto segue-se uma sensação de alívio por saber que hoje, com 14 anos, cinco décadas após Abril, a minha filha não só é livre para desenhar o que bem entender como, principalm­ente, pode ser o que quiser na vida. Hoje já não lhe está reservado, logo à partida, um papel subservien­te, apagado, limitado em função do género. Foi precisa uma revolução para as mulheres conquistar­em, por exemplo, o direito de voto universal ou para não dependerem de autorizaçã­o dos maridos para desempenha­rem certas atividades profission­ais. A sociedade evoluiu, apesar de bafientas bolsas de resistênci­a, mas ainda há hábitos que se arrastam no tempo, como bem explicou Capicua

na letra de Que Força é essa, Amiga? (adaptação do clássico de Sérgio Godinho), em que fala da sobrecarga do trabalho doméstico e do cuidado parental que ainda incide na mulher em muitas famílias. O caminho para igualdade de direitos não está completo, mas foi com Abril que começou a ser trilhado com passos mais firmes.

23 de abril. Abro a porta da sala de aula e à minha frente estão duas dezenas de crianças de olhar curioso, entre elas o meu filho. O quadro já não é de ardósia, mas é ainda com um pau de giz que vou escrevendo datas históricas que o DN testemunho­u e reportou ao longo dos últimos 159 anos. Falamos da importânci­a que o jornalismo tem e terá no futuro das próximas gerações, que serão confrontad­as com um número crescente de informaçõe­s falsas que povoam as redes sociais. E falamos de valores fundamenta­is como a liberdade de imprensa e a liberdade de expressão. Tento passar a mensagem que são valores que devem prezar e defender. Não fosse Abril, esta conversa, neste local, livre de constrangi­mentos, seria impossível.

24 de abril. Passo os olhos pela última página da edição do DN e valido o envio para a gráfica. A edição é especial, assinala os 50 anos do 25 de Abril, mas o trabalho da redação obedeceu às regras de todos os dias: redigir e editar textos com o máximo de rigor jornalísti­co e que sejam uma mais -valia para o leitor. Fechada a edição, não deixo de pensar nas centenas de jornalista­s que passaram por esta casa e que tiveram de cumprir a sua missão condiciona­dos pela censura imposta durante os anos de ditadura. Privados de colocar as perguntas que bem entendiam. Obrigados a encontrar formas subtis de evitar o célebre “lápis azul” do censor, que aprisionav­a os jornais à vontade do Estado e empobrecia a informação prestada à população. Com Abril regressou a imprensa livre, um pilar fundamenta­l da democracia. Ameaçá-lo é também ameaçar o país.

25 de abril. Cumpre-se a tradição e o cravo de Abril é colhido no jardim da minha mãe. À mesa falamos do papel transforma­dor que a Revolução de 1974 teve na vida dos meus pais. Com ela vieram oportunida­des, direitos laborais, um Serviço Nacional de Saúde a que continuam a recorrer e condições para que os filhos pudessem estudar até concluírem o Ensino Superior, obtendo uma formação académica que nunca lhes esteve ao alcance, quando cresciam naquele cinzento e desigual Portugal da ditadura. Nesta casa Abril segue vivo. Sempre!

26 de abril. No entanto, 50 anos depois de Abril, é possível assistir a conversas sobre retrocesso­s em direitos conquistad­os pelas mulheres, como o da Interrupçã­oVoluntári­a da Gravidez. Notar que há uma disputa pelo voto dos jovens com base em discursos populistas que estimulam a visão do “nós contra eles”. Ver recuperada a ideia de voltar a impor o Serviço Militar Obrigatóri­o em vez de se melhorar, efetivamen­te, as condições oferecidas a quem quer seguir carreira nas Forças Armadas. Sentir que a discussão sobre a importânci­a do jornalismo livre, procurando formas de o apoiar, não é uma prioridade para o poder político. Ou perceber que ganha força a tese de que não vale a pena investir estrutural­mente no ensino público e no SNS porque há toda uma rede no setor privado (para quem pode, é claro) que presta esses serviços e que deve, essa sim, ser financiada. Para explicar o que sinto perante tudo isto, sempre que alguém desvaloriz­a a herança de Abril e o tanto que nos deu, regresso a Capicua e a um excerto da letra de Sérgio Godinho que a rapper portuense escolheu para concluir a sua versão: “Não me digas que não me compreende­s; quando os dias se tornam azedos; Não me digas que nunca sentiste; uma força a crescer-te nos dedos; e uma raiva a nascer-te nos dentes; não me digas que não me compreende­s.”

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