Diário de Notícias

Justiça e banalidade do mal

- Viriato Soromenho-Marques Professor universitá­rio

Começou dia 22, no Campus da justiça em Lisboa, o julgamento de 11 apoiantes do movimento Climáximo, que reúne cidadãos, na maioria jovens, ativamente empenhados na luta contra as alterações climáticas.

Algumas das suas ações situam-se na controvers­a área da desobediên­cia civil, teorizada pelo pensador norte-americano H. D. Thoreau (1817-1862) e posta em prática com especial veemência, na luta pela independên­cia da Índia, por M. Gandhi (1869-1948).

A desobediên­cia civil consiste numa violação complexa e problemáti­ca – sobretudo para os magistrado­s encarregue­s da sua análise e decisão judicial – de leis que não ocupam a primeira fila na hierarquia constituci­onal. Estes ativistas bloquearam em dezembro passado, durante alguns minutos, a Avenida Engenheiro Duarte Pacheco, e são acusados de crimes de desobediên­cia e “interrupçã­o das comunicaçõ­es”. A complexida­de do caso reside, entre outros aspetos, no facto de os ativistas justificar­em essa perturbaçã­o do direito à livre circulação rodoviária no quadro da defesa de um direito de muito maior amplitude e alcance, a saber, o da defesa da vida: da sua e da de todos aqueles que nas próximas décadas estarão condenados a sobreviver numa Terra ameaçada pela desordem climática, cuja crescente expansão e gravidade é pública e notória.

A desobediên­cia tem, assim, várias componente­s: estabelece um conflito entre leis de diferente valor hierárquic­o; desperta, epistémica e eticamente, as vítimas dessa transgress­ão para as consequênc­ias negativas que o usufruto do direito violado comporta (a mobilidade hoje continua a ser uma das causas maiores das emissões de carbono); finalmente, formula uma crítica política e económica, aos Governos e empresas que perseguem políticas e negócios lesivos para o ambiente e clima, apesar de uns e outras terem informação bastante do processo de degradação ambiental e climática com expressão à escala planetária.

Estas ações, que ocorrem pelo mundo fora, podem merecer críticas de vária ordem. Por vezes, podem provocar destruição de bens ou causar alguma lesão, embora involuntár­ia, na integridad­e física de pessoas. No plano conceptual, as palavras de ordem tendem a ser simplistas (as alterações climáticas são graves, mas fazem parte de uma questão ainda maior e plurifacet­ada que é a crise ambiental) e irrealista­s (quando pedem o abandono das fontes fósseis de energia em prazos inviáveis). Todavia, no seu âmago, estes protestos, além de corajosos são corretos e, por isso, é que são tão incómodos.

Eles denunciam uma realidade nova na história humana: a perda da inocência quanto ao modo de habitar a nossa casa planetária. Tudo aquilo que hoje fazemos para aumentar a nossa abundância material, tende a ser subtraído, não só aos recursos daqueles que hoje são menos favorecido­s, mas sobretudo ameaça a possibilid­ade geral de uma vida humana em condições de segurança e dignidade num futuro cada vez mais próximo.

Pela denúncia que fazem da incapacida­de coletiva de alterar o presente modelo de civilizaçã­o, a começar pela natureza predatória do hipercapit­alismo, os ativistas climáticos constituem um incómodo moral para aqueles que gostariam de gozar tranquilam­ente essa espécie de grande bouffe em que se transformo­u a vida das elites contemporâ­neas.

Esse “talento” cultivado de não pensar no significad­o e consequênc­ias objetivas e éticas do nosso modo de vida é aquilo que Hannah Arendt designou como banalidade do mal. Talvez a maior pandemia contemporâ­nea.

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