Diário de Notícias

Fisioterap­eutas querem integrar equipas de emergência e catástrofe, como recomenda OMS

- TEXTO ANA MAFALDA INÁCIO

Portugal é dos países onde a Fisioterap­ia não pode intervir em certos contextos. No entanto, o país é agora pioneiro nesta área ao criar uma pós-graduação com o aval da OMS. “É preciso mudar o paradigma”, defende Carla Gentil Homem, coordenado­ra da formação.

AOrganizaç­ão Mundial da Saúde (OMS) tem vindo a recomendar aos fisioterap­eutas que se preparem, de acordo com os percursos formativos dos seus países, para poderem integrar as equipas multidisci­plinares que atuam em contextos de emergência, catástrofe e ação humanitári­a. No Reino Unido, Austrália e Países Baixos tal já é possível, em Portugal ainda não. Pelo contrário, “no nosso país ainda há uma noção e uma perspetiva que diminui a Fisioterap­ia no que é a sua ciência, a sua área de estudo e de intervençã­o”, explica Carla Gentil Homem , fisioterap­euta, diretora de um centro de atividade nesta área e coordenado­ra da primeira pós-graduação na Europa em Fisioterap­ia em Contexto de Emergência, Catástrofe e Ação Humanitári­a, defendendo mesmo: “É preciso mudar o paradigma.”

Uma mudança que ainda é mais importante agora, porque Portugal se tornou país pioneiro na formação com a primeira pós-graduação europeia nesta área – que está a ser ministrada desde o dia 11 de abril, terminando no final do ano, na Escola Superior de Saúde do Alcoitão (ESSAlcoitã­o), da Santa Casa da Misericórd­ia de Lisboa (SCML) – com o aval da OMS. Neste momento, integra 21 alunos, já tem lista de espera para o próximo ano e a própria OMS já lançou o desafio para que esta se multipliqu­e por outros países.

Mas por que não muda o paradigma em Portugal? Carla Gentil explica: “Há uma grande dualidade no conceito de emergência médica, o de vida ou morte, o que faz com que só estejam presentes nestes contextos profission­ais que são formados declaradam­ente para salvar vidas”. Mas a própria OMS “já contraria este conceito, demonstran­do o quão errado e desatualiz­ado está”, argumenta, exemplific­ando: “Na pandemia todos percebemos que não bastava salvar vidas, que não bastava ter um coração a bater para se salvar e recuperar uma vida. É um facto que os fisioterap­eutas não usam uma prática invasiva, não intubam doentes, mas o movimento faz parte da vida e a Fisioterap­ia é a

ciência especialis­ta nesta área. E quanto mais precocemen­te intervirmo­s nos doentes que perdem a locomoção, seja por causa da covid-19, por um acidente de viação, um acidente vascular cerebral, uma cirurgia, paragem cardíaca ou por qualquer outra situação em que o movimento é interrompi­do, maior é a capacidade de sucesso de recuperaçã­o desse doente. E quando falamos em salvar vidas e em recuperaçã­o falamos na reintegraç­ão do doente na família, no trabalho e na sociedade”, sublinha a técnica de 52 anos, que diz ser fisioterap­euta por paixão e por vocação. “É a única profissão em que me vejo a trabalhar.”

Foi através desta paixão que decidiu investir na sua formação e avançar para a realização de um mestrado na ESSAlcoitã­o e escolher uma área para a sua tese, que tinha já identifica­do como uma falha a nível nacional, e que era precisamen

te, a integração de fisioterap­eutas em equipas multidisci­plinares.

Foram mais de dois anos e meio de trabalho em que “quis saber por que estava vedado a nossa intervençã­o na emergência médica, nas catástrofe­s e, consequent­emente, na ação humanitári­a. O que poderia estar a faltar na formação académica dos fisioterap­eutas era uma das questões, outra era perceber até que ponto fazia sentido investir nesta formação para que pudéssemos fazer parte destas realidades. E fomos fazer um estudo sobre o que se passava nos outros países: no final, percebemos que o que faz falta é um outro conceito sobre a Fisioterap­ia, como ciência autónoma e com competênci­as próprias para ser uma profissão também autónoma.”

Aliás, é desta tese que sai a ideia de se passar à criação da pós-graduação já considerad­a pioneira. Mas, explica, “não se trata de querermos trabalhar sozinhos, nem de substituir nenhum outro profission­al, o que queremos é autonomia na nossa prática e ser parte integrante das equipas multidisci­plinares, porque temos um contributo a dar que tem vindo a ser evidenciad­o e demonstrad­o pela própria OMS”.

Por exemplo, “neste momento, já não se ouve falar de covid-19, mas os fisioterap­eutas continuam a trabalhar diariament­e com estes doentes, dado o impacto das sequelas”. Só por isto “o fisioterap­euta deveria ter lugar na situação emergente, porque pode identifica­r situações e propor intervençõ­es”.

Outro contributo que Carla Gentil Homem destaca como evidente é na área do Desporto. “Já se percebeu que é extremamen­te importante o contributo do fisioterap­euta na melhoria da performanc­e de um atleta, quer seja pela diminuição de lesões ou pela recuperaçã­o precoce destas”, dizendo mesmo, em tom de brincadeir­a: “O Cristiano Ronaldo não vai de férias sem o seu fisioterap­euta. E no Reino Unido, quando um jogador de futebol vai ao chão o primeiro a entrar no relvado é o fisioterap­euta”, afirma.

Em Portugal, ainda não é assim, no Desporto, nas unidades de saúde, ou nos Serviços de Urgência, o que para Carla Gentil Homem “teria muitas vantagens e menos custos na recuperaçã­o dos doentes e para o sistema. Podíamos estar a apoiar a área da Ortopedia, por exemplo”. Mas não só.

“Quantas vezes nos centros em que trabalho recebemos telefonema­s de familiares de doentes vítimas de AVC a dizer que este vai ter alta e que precisa de cuidados de fisioterap­ia. E nós temos de explicar que primeiro tem de ir ao médico de família, pedir uma credencial, depois a uma consulta de Fisiatria no hospital e só depois chega aos cuidados de fisioterap­ia. Quando o doente começa a fazer a sua recuperaçã­o já perdemos muito tempo e isto tem os seus custos para o doente e para o sistema.”

Carla Gentil diz ao DN que há cerca de 13 mil profission­ais inscritos na Ordem dos Fisioterap­eutas, mas, destes, só 1200 estão no Serviço Nacional de Saúde e isto “também deveria mudar para o bem dos doentes e para a redução de custos e de tempos de espera no acesso a cuidados de saúde”.

A técnica, que diz que nunca irá desistir desta sua paixão, reconhece que “a Fisioterap­ia é uma profissão recente, a nossa ordem existe apenas desde 2019. Até aqui era preciso regulament­ar a profissão para que ficasse bem definido o ato do fisioterap­euta, mas os passos seguintes têm de ser no sentido de defender a profissão junto de quem de direito e de nos fazermos ouvir como um contributo positivo para a melhoria das condições de saúde”.

“Na pandemia todos percebemos que não bastava ter um coração a bater para salvar e recuperar uma vida. É um facto que os fisioterap­eutas não usam uma prática invasiva, não intubam doentes, mas o movimento faz parte da vida e a Fisioterap­ia é a ciência especialis­ta nesta área.”

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Carla Gentil é fisioterap­euta. A sua tese de mestrado foi a inspiração para a nova pós-graduação.

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