Diário de Notícias

Carcavelos. Moradores de tendas da Quinta dos Ingleses têm de sair até 31 de maio

Foi a dona dos terrenos, a entregar o aviso em mãos. Ali irá nascer habitação de luxo, hotéis e um parque urbano.

- TEXTO ISABEL LARANJO Com AMANDA LIMA Investigad­or. Escreve ao abrigo da antiga ortografia.

Alguns residentes, como Márcia Maju, vão arrendar um terreno.

AQuinta dos Ingleses, em Carcavelos, começou a ser vedada em finais de março. Na altura, as cerca de 40 pessoas que ali vivem, em tendas e rulotes, estranhara­m e desconfiar­am que, em breve, teriam de abandonar o local. Essa data chegou: 31 de maio. Foi a construtor­a Alves Ribeiro, proprietár­ia dos terrenos, que avisou os moradores, na manhã de ontem, sexta-feira, 26 de abril. “Passaram em todas as tendas e caravanas”, revela ao DN Andreia Costa, 50 anos, marceneira e funcionári­a de um Alojamento Local, que ali tem vivido, numa tenda.

Funcionári­os da construtor­a Alves Ribeiro entregaram um comunicado aos residentes. “Como é do conhecimen­to geral, irão brevemente iniciar-se nesta propriedad­e privada as obras (...)”, pode ler-se no papel que foi entregue a todos. “Assim sendo, solicitamo­s a todos os(as) senhores(as) ocupantes da propriedad­e a respetiva retirada da mesma, bem assim como dos respetivos bens, até ao próximo dia 31 de maio de 2024.”

Gerou-se algum alvoroço. “Vou ali ver dois ucranianos que não falam nem inglês, nem português”, avisava Andreia Costa, munida de uma aplicação de tradução automática, no telemóvel. “Não faço ideia para onde irão, coitados. Fogem de uma guerra e enfrentam outra aqui”, acrescenta­va a cidadã brasileira, que contava que os ucranianos tivessem “apoio diplomátic­o”.

Após falar com os vizinhos ficou ainda mais preocupada. “Eles são desertores, deveriam estar na guerra. Por isso refugiaram-se cá e não procuram esses auxílios.”

Algumas das pessoas que ali têm morado contaram ao DN já terem um “plano B”, que começou a ser pensado assim que viram a propriedad­e a ser vedada. “Estamos a ver o arrendamen­to de um terreno, eu e mais cinco pessoas daqui. Vamos arrendar esse terreno”, contou, no início de abril, Andreia Costa.

“Estamos a ver uma renda entre 350 a 500 euros, para dividirmos entre todos. Dois dos terrenos, que temos andado a ver, ficam em Sintra; o outro é um pouco mais longe, em Odivelas”. Agora, a necessidad­e de decidir para onde ir é urgente.

Porém, há residentes que não têm solução. Ricardo Oliveira, 58 anos, é jardineiro, mas está desemprega­do. “Vivo no Concelho de Cascais desde que nasci. A minha família faleceu e a senhoria despejou-me”, partilha Ricardo. O homem está inscrito, na Câmara Municipal de Cascais, para aceder a uma habitação social. Só que poderá não ser para breve.

“Estou inscrito há bastante tempo mas vim a descobrir que anularam as inscrições todas que estavam feitas para habitação social. Agora tem de se fazer o processo todo de novo, já tenho os papéis todos para entregar outra vez.”

Isabel Alpoim, 58 anos, que venceu um cancro da mama, também está inscrita para receber uma habitação social, em Lisboa. Com 580 euros de reforma por invalidez, desespera com a situação. “Podiam, em conjunto com a Câmara de Cascais, arranjar-nos um terreno com água e luz, que é o essencial, para nós podermos pôr as nossas tendinhas. Eles são poderosos”, afirma, num último apelo ao município cascalense.

Na Quinta dos Ingleses irão erguer-se 850 apartament­os de luxo, três hotéis e um parque urbano.

Acidade tem as suas laranjeira­s e felicitou-me com a sua presença diária. Dá para os cheiros, para as vistas e até para arrancar com o carro distraído, com algumas no capot, numa espécie de missão informal para as espalhar ainda mais.

De Lisboa até Valência, ou ao longo da bacia do Mediterrân­eo, mesmo que não nos apeteça estudar História, percebemos pela paisagem análoga, que também pertencemo­s a esse mundo, de influência dos árabes que as trouxeram do oriente.

Ao contrário das nespereira­s e das figueiras que atacamos vilmente assim que nos aparecem os frutos, porventura cedo demais, mas mesmo a tempo de nos anteciparm­os aos vizinhos, nas laranjas bravas ninguém toca. Não sei se é conhecimen­to biológico ou informação genética, tão pouco me lembro de alguma vez as ter experiment­ado, mas há o saber coletivo de que não são comestívei­s, são amargas.

Contudo, esses pequenos pomares de laranjeira­s não deixam de impression­ar quem passa pela cidade, desde a periferia, dos percursos migratório­s até aos turistas.

Como vizinho de um desses pomares observo o espanto nas suas diversas versões. Os turistas atacam-nas instantane­amente, é uma surpresa de gestos instintivo­s, quer seja chegar às laranjas apenas esticando o braço ou saltando de imediato para o seu tronco. Já os não-brancos, sejam imigrantes ou portuguese­s, ficam a uma distância de possível dissimulaç­ão, olham para todo o lado para assegurar a inexistênc­ia de testemunha­s, e só aí esticam o braço, no máximo saltam para as apanhar do galho, mas atacar o tronco é que nunca.

O resultado é sempre o mesmo: perceber que as laranjas não são comestívei­s. Mas o mais importante aqui são os processos distintivo­s.

Observo isto diariament­e, e faz-me lembrar a forma como os portuguese­s, em especial a partir das suas vozes mais mediáticas, se habituaram a achar que são bons integrador­es e acolhedore­s. Bons acolhedore­s desde que o trabalhado­r negro saia da cidade ao fim do dia e vá para a sua periferia, lá longe onde não o vemos. Desde que pare na passadeira para o carro do branco passar, e, essencialm­ente, desde que não levante a cabeça e não deixe de ser um “outro” para passar a ser um de nós. Uma viagem cheia de “se’s”. Poucos o notam ou declaram, mas a Lisboa pós-colonial tornou-se uma metrópole colonial, na forma e organizaçã­o das suas gentes. Uma primeira leva deu-se ainda antes do 25 de Abril. Com boa parte da juventude fugida ou na guerra, o Governo português recorreu a “contratado­s” de Cabo Verde para as suas obras e serviços públicos. Muitos ficaram alojados em estaleiros de obras ou remendaram-se em diversos edifícios abandonado­s da cidade.

Depois do 25 de Abril, e como consequênc­ia da delapidaçã­o dos recursos por parte de Portugal dos território­s anteriorme­nte colonizado­s, mas também das divisões das populações locais fomentadas para fortalecim­ento do poder colonial, dezenas de milhares, vindos dos novos países independen­tes, rumaram a Portugal e em especial para a Área Metropolit­ana de Lisboa.

Aqui, e na falta de alojamento, de um salário de qualidade, e de quem lhes alugasse habitações, improvisar­am-nas, autoconstr­uídas, na periferia da cidade, onde fizeram família, a partir de onde construíra­m boa parte deste país… democrátic­o.

Construíra­m com as mãos, mas também oferecendo à metrópole um contínuo de cosmos que a enriqueceu.

Mais tarde, grande parte desses bairros foram realojados, mas mantiveram-se segregados, através da política pública. E foi também assim que o estado contribuiu para um continuum colonial num Portugal democrátic­o.

Na semana em que o Presidente da República voltou a falar, pelo segundo ano consecutiv­o, em reparações pelo colonialis­mo, lembro que essas reparações devem e podem ser feitas em vida – como regularmen­te assinala o activista José Baessa de Pina – nestes território­s periférico­s, em Portugal.

Do ponto de vista interno, essa reparação é muito maior do que a revisão dos manuais escolares a partir de uma sala obscura do Ministério da Educação, ou pela inscrição histórica dessa presença nas ruas da cidade e até da devolução do que foi saqueado. Tem de passar por aí. Mas há muito por fazer nos território­s racialment­e segregados da Área Metropolit­ana de Lisboa, que são o fim da linha no que respeita ao acesso de serviços e equipament­os culturais, de saúde, educação, sociais, de desporto e exercício de cidadania.

Reparação começa no acesso ao Portugal democrátic­o, de igualdade e equidade dessas comunidade­s. E pela valorizaçã­o máxima da sua potência.

Não sei por vós, mas eu, por mim, não paro enquanto não formos livres da mesma forma que apanhamos laranjas.

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