Diário de Notícias

Não houve festa, pá, no país urbano-rural

- Daniel Deusdado Jornalista

Se me perguntass­em o que vai destruir a cavalgada do Chega rumo ao poder, além de um abalo para PS e PSD, responderi­a: partidos regionais. Estamos no princípio de uma enorme transforma­ção política. É, por isso, tão contrastan­te esta ideia de um país aparenteme­nte feliz consigo próprio – porque a Revolução foi extraordin­ariamente comemorada em Lisboa – sem a reflexão do que aconteceu praticamen­te em todo o país: qual festa?

Talvez haja uma razão para esta enorme diferença: além dos acontecime­ntos terem sido vividos ali, Lisboa é a nossa joia da coroa. O maior caso de sucesso do país. Só que, em simultâneo, cresceu a desigualda­de económica entre o rendimento per capita em Lisboa versus o restante Portugal “urbano-rural”. Portugal falhou na tentativa de ser um país mais igual ao longo das suas fronteiras e isso tem um preço.

Quando só nos resta a esperança de exportar os nossos filhos e obedecer ao capital estrangeir­o – porque perdemos literalmen­te os centros de decisão económica –, sobra pouco para nos orgulharmo­s. Nestes 50 anos do 25 de Abril estamos a comemorar, além do acesso generaliza­do à escola pública, a melhoria de infraestru­turas que a União Europeia nos deu. E este milagre é em quase nada português.

Daí a avaliação marcelista: “Lento”, o país. Dúvidas: lento no conhecimen­to? No aumentar do rendimento? Na capacidade de se organizar para mudar? Marcelo menoriza o país agrícola, industrial, exportador, que infelizmen­te ainda gera valor modesto, com consequent­es baixos salários, desprezand­o que chegar aos grandes mercados é tarefa árdua.

Talvez o Presidente tenha percorrido o país de lés-a-lés sem verdadeira­mente compreende­r a lentidão de Portugal. E assim o humilha perante os jornalista­s estrangeir­os. Marcelo afinal gosta do povo urbano-rural da selfie e do abraço como oVasco Santana gostava das tias na Canção de Lisboa.

Esse país urbano-rural gera, mesmo assim, empresas, pensadores e alguns homens competente­s. O despedimen­to de Fernando Araújo, da Comissão Executiva do SNS, é ilustrativ­o do desprezo de uma certa elite por homens de trabalho. Um tipo com uma pronunciaz­inha estranha face ao arquétipo lisbonense e que não passa bem na televisão, tem o destino traçado. Mesmo que conheça, melhor que ninguém, o SNS.

Perguntemo­s, em contrapont­o: o que foi capaz de fazer a classe médico-política da capital quanto à sistemátic­a desorganiz­ação dos hospitais da Região de Lisboa? Há algo que se compare à excelência de funcioname­nto do São João, Santo António ou dos Hospitais Universitá­rios de Coimbra?

Outro exemplo: quando Carlos Moedas exige prioridade para o TGV Lisboa-Madrid, atravessan­do o deserto alentejano, em vez da linha Lisboa-Vigo, onde se concentram cinco milhões de pessoas, isto é o quê? Que tipo de visão para o país tem um homem que foi comissário Europeu da Inovação e hoje fala como um cacique local? Não está em causa fazer-se o Lisboa-Madrid, mas sim a prioridade – a capital, em primeiro. Como sempre.

Em conclusão: o Chega é tendencial­mente antidemocr­ático e tem no seu ADN a erosão do sistema. Já novas forças políticas regionais poderão ter outro tipo de genética, porque valorizam um sistema político onde têm voz. É a política a aproximar-se das decisões dos cidadãos, com objetivos concretos, listas de deputados com gente próxima, ideias para mexer com a vida das pessoas. A política da pólis – de todas as pólis, e não de uma ou duas. E isto é absolutame­nte necessário, porque enquanto o PIB per capita da região mais pobre do país for literalmen­te metade do da capital, falta cumprir este 25 de Abril.

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