Matthew Perry e a coisa terrível de que Friends não o salvou
A autobiografia do falecido ator chegou há um mês às livrarias e tem estado nos lugares cimeiros dos tops de vendas. Não admira: Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível é a confissão por que os fãs de Chandler Bing ansiavam, com uma nudez de alma nada me
Não é preciso avançar muitas páginas para se sentir a vertigem. Na verdade, basta contar três linhas para se perceber ao que vamos. “Se quiserem, podem considerar o que vão ler como uma mensagem do além, o meu além” (quarta linha, antes do relato de uma experiência de quase morte; pausa para respirar). Estas são as palavras que Matthew Perry escolheu para dar as boas-vindas ao leitor de Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível, agora editado em Portugal (Casa das Letras, tradução de Renato Carreira). Um livro de memórias que teve o seu lançamento original em 2022 – um ano antes da notícia chocante, mas não totalmente inesperada, da sua morte, a 28 de outubro último –, trazendo ao conhecimento público uma batalha que vinha sendo travada no sigilo possível, entre muitas idas a hospitais e internamentos em unidades de reabilitação. A batalha contra o alcoolismo e a dependência de opiáceos. “Para me manter vivo, tinha-me transformado num doente profissional”, conta.
Friends, Amantes e Aquela Coisa Terrível está repleto de frases assim, diretas, absolutamente avessas a qualquer dourar da pílula e empenhadas em manter o humor à tona, para afastar a depressão das imagens evocadas. Na realidade, outro tom não seria de esperar do ator que deu vida a Chandler
Bing na série de sucesso internacional Friends (1994-2004), o tipo da masculinidade anedótica, vulnerável, com charme sarcástico a rodos. Uma personagem, como diz a certa altura, que nasceu no papel para ser levada ao ecrã por ele e mais ninguém (ainda antes de lhe ser atribuída).
“Quando li o guião de Friends Like Us [título de trabalho da série], foi como se alguém me tivesse seguido durante um ano, roubando as minhas piadas, copiando os meus maneirismos, fotocopiando a minha visão da vida, cansada e espirituosa. Uma personagem em particular destacou-se para mim: não é que eu pensasse que podia fazer de ‘Chandler’, eu era o Chandler.”
Assumindo então o perfil que, para todos os efeitos, é o dele (“o meu estilo, o meu Chandler”) Perry conduz-nos pela infância, adolescência, vida adulta e meia-idade daquele que nunca sentiu propriamente o quentinho do colo familiar: desde muito cedo, deram-lhe barbitúricos para acalmar o choro, tornou-se a “criança desacompanhada” em voos entre o Canadá e Los Angeles, devido à separação dos pais, iniciou-se no álcool aos 14 anos e, antes disso, aprendeu a refugiar-se em métodos para fazer as pessoas rir, apurando a receita até ser capaz de ir além da sombra do miúdo ávido por atenção.
Perry, Jennifer Aniston, David Schwimmer, Courteney Cox, Matt LeBlanc, Lisa Kudrow, o sexteto magnífico de
É uma junção de pontos que vão dando consistência óbvia à solidão do homem que escreve as memórias aos 52 anos, numa casa com vista para o Oceano Pacífico, porque precisa de sentir a segurança de “um lugar onde existe amor. Lá em baixo, algures naquele vale, ou naquele vasto oceano”, esclarece, “é lá que está a paternidade. É lá que está o lar”.
Lamechas? Não propriamente. Assim que as histórias da sua mudança para Los Angeles e a malfadada busca pela fama começam a encadear-se no livro, há uma luz que vinga, e algumas aventuras hollywoodescas que merecem ser lidas nas palavras do próprio – como um encontro com M. Night
Shyamalan num bar ou o namoro com Julia Roberts –, mesmo quando a combinação de humor e algum excesso de franqueza pode não cair bem nos tempos que correm, em virtude das múltiplas sensibilidades. Afinal, ele assume-se como o ator que dormiu com meio mundo (as “amantes” do título) e acabou (acabou mesmo, mal sabia...) sem um único compromisso sério, além do seu trabalho em Friends.
De resto, aí estava visível o seu monstro secreto, ainda que nunca tenha ido para o estúdio sob o efeito de substâncias: “É possível acompanhar a trajetória da minha dependência se medirmos o meu peso de temporada em temporada. Quando tenho peso a mais, é álcool. Quando estou magro, são comprimidos. Quando tenho uma barbicha, são muitos comprimidos.”
Ao longo dos capítulos, com interlúdios, Matthew Perry está sempre a regressar à “Coisa Terrível” – até porque ela esteve sempre presente. Algures a misturar-se com os milhões, ganhos em episódios e gastos em reabilitação; ou a crescer dentro dele, em silêncio, ainda na época da sua memória preferida de infância (ver Annie Hall com a mãe); ou a alojar-se na magia de ter conhecido e contracenado com River Phoenix (As Noites Loucas de Jimmy Reardon, 1988); ou nos bons momentos passados com Bruce Willis (Falsas Aparências, 2000 e 2004); ou no melhor projeto de uma carreira, que conquistou o Globo (esse, claro); e, antes de tudo, na visão da fama como preenchimento de um vazio.
Ser famoso correspondia, na perspetiva cega do jovem Perry, à ausência total de problemas, ao passe de mágica que tudo resolve e torna a existência uma eternidade doce e imune aos males da vida: “Em 1986, tinha a certeza de que a fama iria mudar tudo e ansiava por ela mais do que qualquer outra pessoa à face do planeta. Precisava dela. Era a única coisa que me iria curar. Tinha a certeza disso. Vivendo em Los Angeles, de vez em quando encontrávamos uma celebridade ou víamos o Billy Crystal no Improv, reparávamos no Nicolas Cage na cabina ao lado e eu sabia que eles não tinham problemas. Na verdade, todos os seus problemas tinham sido eliminados. Eram famosos.”
Não era assim, e nunca foi assim. Chandler/Matthew teve tudo o que a fama e o dinheiro podem dar. Mas nem o carinho de Friends, nem o facto de poder comprar casas com vista, ao ritmo que lhe apetecesse, o livraram da Coisa Terrível. E ele é brutalmente honesto sobre isso. Em termos literais: eis uma confissão que vem das entranhas.